Amores que matam: o lado sombrio das relações entre jovens
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Na literatura, no cinema e na música, que moldam o imaginário coletivo da juventude, o amor surge como algo arrebatador, marcado por uma intensidade que, por vezes, roça o irracional. Frases como "Sem ti não sou nada", "Morro por ti" ou "És tudo para mim" são tidas como expressões românticas. Mas estas narrativas ocultam um lado sombrio que normaliza a ideia de que amar é possuir, controlar ou anular-se em função do ente amado. É neste caldo emocional que germinam relações tóxicas que, nos seus desfechos mais extremos, se convertem em amores que matam - em sentido figurado e, por vezes, literal.
Os jovens estão particularmente vulneráveis e expostos a este tipo de dinâmicas. Nesta fase da vida em que se está a consolidar a identidade, a explorar os limites entre o eu e o outro, e a desenvolver competências que permitam gerir emoções, é fácil confundir ciúme com cuidado, controlo com proteção, ou dependência com amor. As redes sociais, longe de mitigar estas confusões, ampliam a ansiedade relacional. A hipervigilância - número de reações, tempos de resposta, ambiguidade comunicacional - gera um ambiente de dúvida, controlo obsessivo e stresse. Se muitos crescem com a perceção de que é normal ter de "provar" o amor através da submissão ou da renúncia à própria liberdade e estilo de vida, também há quem valide o controlo coercivo como manifestação de cuidado, acabando por normalizar comportamentos que, na realidade, são abusivos.
Em Portugal, diversos inquéritos têm demonstrado que uma parte significativa dos jovens tolera, ou até legitima, comportamentos de violência nas relações amorosas. De acordo com o Observatório Nacional de Violência no Namoro, uma em cada quatro jovens, entre os 15 e os 19 anos, já foi vítima de violência psicológica ou física em contexto de namoro. Talvez ainda mais inquietante seja o facto de muitos jovens não se reconhecerem no papel de vítimas ou, pior, de agressores.
Este fenómeno não emerge no vazio. É moldado por padrões sociais com profundas raízes, que promovem estereótipos entre sexos. Os rapazes são educados para reprimir emoções e dominar; as raparigas, para agradar, ceder e "salvar". Mas este fenómeno radica na lamentável escassez de "educação emocional", por profissionais habilitados, que esclareçam sentimentos como amor, paixão ou desejo sexual (e o que os diferenciem do ponto de vista biológico e psicológico), mas também que abordem dinâmicas de namoro disfuncionais. A romantização da dor como inextrincável do amor constitui uma perigosa distorção cognitiva nas relações de intimidade.
É urgente abordar este tema nas famílias, mas, muito especialmente, nos média e nas escolas, desmistificando crenças erróneas e elucidando, de forma simples e clara, este tema tão complexo. Importa educar para o consentimento, para a autonomia emocional, para o respeito mútuo; ensinar que o amor não aprisiona nem sacrifica e que quem ama não manipula, não ameaça, não magoa; e tornar claro que terminar uma relação de intimidade pode ser um ato de coragem, não de fracasso.
Num tempo em que a saúde mental se assume e impõe como uma prioridade social, as relações íntimas devem estar no cerne deste debate. O sofrimento que emerge de relações abusivas na juventude não é um mero "drama da adolescência", é um problema grave, muitas vezes silencioso e invisível. Se negligenciado, pode deixar marcas para toda a vida, manifestando-se através de comportamentos de risco para a saúde e de perturbações a nível da saúde física e mental, podendo mesmo reduzir a longevidade do indivíduo. Em casos extremos, pode conduzir a desfechos fatais, seja por suicídio ou homicídio.
Compete à sociedade e, sobretudo, às entidades responsáveis fomentar uma cultura emocional que inspire e estimule a manifestação do amor de forma saudável, com liberdade, segurança, respeito e inteireza. Só assim deixaremos de testemunhar histórias em que, em nome do amor, se destrói quem se dizia amar.
Artigo publicado no âmbito do bicentenário da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em parceria com o JN