Anatomia da crise socialista
As crises políticas acontecem sempre da mesma maneira, independentemente do país, do sistema político ou da língua. Têm sempre origem em um acontecimento específico, que até pode ser pequeno e mais ou menos irrelevante, e num desleixo, que é sempre grande, ou pelo menos grosseiro.
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O pequeno problema origina-se de forma clássica: por disputas internas entre os membros de um governo ou partido, por conflitos ideológicos, por corrupção, por problemas económicos ou sociais graves, como uma recessão ou uma crise humanitária, por falta de liderança eficaz ou por influência indevida de outros países. O desleixo é um mistério.
Um amigo que não vejo há muito, enófilo, fumador de cachimbo e antigo polícia de investigação - portanto versado nas artes da delicadeza e da paciência - disse-me uma coisa que nunca esqueci. Só se consegue apanhar um criminoso, ou descobrir um crime, quando o autor está convencido de que não vai ser apanhado.
Não que os criminosos sejam políticos, ou vice-versa, cada coisa no seu sítio, não quero de maneira nenhuma dizer tal coisa, mas as duas atividades, por requererem extrema e permanente atenção e não tolerarem erro, encontram no desleixo um ponto comum e traço de união. Talvez fosse por isso que Borges dizia que "podre" e "poder" se escrevem com as mesmas letras.
A atual crise política lusitana tem origem em quase todos os pequenos problemas e num enorme desleixo. No caso presente e atendendo aos protagonistas, também não encontramos novidade.
A tragédia vem acompanhada por aquela típica distração que acomete os partidos de governo com maioria absoluta e em segundo mandato. Sentem o rei na barriga e esquecem-se de fazer o trabalho de casa. É o princípio do fim. Normalmente a coisa já não se resolve.
* Presidente da Associação Portugal Brasil 200 anos