Ao contrário do que reza a tradição bíblica, em que o anjo caído é aquele que, em virtude da ambição, cai na trama das trevas e é expulso do paraíso, Yana Rykhlitska é um anjo caído apenas por lhe terem cortado as asas num ataque covarde em Bakhmut.
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Yana Rykhlitska tinha apenas 29 anos, ainda 28 quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Era então uma jovem trabalhadora de uma seguradora ucraniana e decidiu, imediatamente, alistar-se nas Forças Armadas e servir o seu país.
Sem hesitações, tornou-se paramédica na 93.ª Brigada, em Kholodnyi Yar e, durante o último ano, esqueceu a própria vida para socorrer todos os que precisaram das suas asas de anjo em toda a região massacrada de Bakhmut.
Os cabelos doirados, os olhos azuis, o rosto de menina, ajudaram à escolha do nome "Anjo de Bakhmut" que os ucranianos lhe atribuíram em vida, mas é o seu caráter destemido e salvador que é agora evocado perante a dor da sua morte.
Yana salvou soldados - homens e mulheres que, como ela, decidiram doar a vida à pátria amada -, mas também civis - homens e mulheres vulneráveis e crianças, muitas crianças que, sem ela, estariam agora num qualquer lugar da Rússia; e ainda cães e gatos que sobreviveram aos bombardeamentos, mas ficaram sozinhos debaixo dos escombros dos edifícios.
Uma das suas missões foi ajudar civis indefesos a fugirem de Bakhmut. Ao longo dos meses de intensos combates na região, muitos ansiaram pela chegada do Anjo de Bakhmut para saírem dos abrigos e partirem em busca de um lugar mais seguro. Na última sexta-feira, durante um salvamento, Yana, o Anjo, sucumbiu a um atentado russo à ambulância em que seguia com feridos civis.
O vil ataque a civis, mais um entre tantos outros, é atribuído, pelo Gabinete de Guerra da Ucrânia, aos mercenários do grupo Wagner. Em pleno século XXI, na Europa que se afirma civilizada, não podemos continuar a assistir a estes ataques impiedosos a civis, à ação assassina de mercenários e à própria brutalidade desta guerra.
A história conta-nos como foram violentas as guerras do passado e o tempo presente mostra-nos que os líderes mundiais não aprenderam nada com a história e repetem hoje os erros de guerras antigas, deixando antever a dimensão da tragédia desta guerra.
Yana era amada pelos ucranianos. A imprensa da Ucrânia afirma que a sua morte é uma das piores baixas que o exército ucraniano sofreu a nível psicológico. O Governo da Ucrânia evoca-a como uma heroína capaz de arriscar a própria vida para ajudar os outros.
Os cemitérios da Ucrânia estão cheios de heróis e de heroínas que deram a vida pelo seu país. A questão que se impõe é: Até quando vamos continuar a assistir a esta carnificina? Desta vez, foi Yana Rykhlitska, o Anjo de Bakhmut, a heroína da Ucrânia que é agora imortal.
Cortaram as asas ao Anjo de Bakhmut, mas não quebraram a Ucrânia. Cada baixa especialmente sentida no exército ucraniano é convertida em maior determinação e em maior espírito de luta pela autodeterminação e pela liberdade da Ucrânia. Os ucranianos agigantam-se perante as atrocidades da Rússia para admiração do mundo. Resta saber até quando será necessário assistirmos ao aumento da galeria dos heróis e das heroínas desta guerra insana.
* Historiadora (HTC - CFE - Nova FCSH)