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Para os artistas, qualquer dia é Ano Novo. São uma espécie em constante renovação, tão maravilhosa quanto complexa (e complicada), que precisa de alimento permanente, tanto, que decerto produzem uma pegada ecológica maior do que os jactos privados dos CEO; além de uma enorme pegada emocional, fruto do funâmbulo que dentro deles se equilibra num fio delicadamente estendido entre a paixão e a insegurança. Se tudo correr bem, o perigo do funâmbulo rende uma obra que só eles podem produzir, os artistas, mas que é tanto deles como nossa.
Ser artista é uma beleza e uma complicação. Francisco Duarte Coelho sabe disto melhor do que eu, já que o meu único material artístico é o abecedário e não preciso de mais. Mas os outros artistas, como o próprio Francisco Duarte Coelho, transcendem o abecedário, precisam de outra matéria-prima.
Dessa necessidade nasceu um projecto único de reciclagem artística, a ver se a pegada ecológica diminui, aumentando a pegada criativa. Em colaboração com o pelouro da Cultura da Junta de Freguesia da Misericórdia, em Lisboa, Francisco Duarte Coelho encheu um apartamento da mais bela e pura quinquilharia. É um autêntico gabinete de curiosidades, cheio de matéria velha que se pode tornar nova matéria para os artistas.
Molduras desconjuntadas, televisões bojudas com ar de quem perdeu o préstimo, pinguins insufláveis de praia, caixas e caixotes com tintas, pincéis, canetas, lápis e bolas de plástico, cassetes escondendo filmes que já ninguém vê fora das plataformas digitais, leitores de cassetes que já ninguém usa, berbequins, madeiras, contraplacados, teclados electrónicos, tecidos vários, calhas de iluminação, malões que guardam segredos (o segredo pode ser o uso do próprio malão) - enfim, tudo se oferece como uma oportunidade criativa.
A “Matéria - Banco de Materiais para Artistas”, nome que Francisco Duarte Coelho deu ao projecto, está aberta mediante marcação. Os artistas visitam este maravilhoso gabinete de curiosidades e levam o que quiserem, desde bugigangas analógicas dos anos oitenta a portas, ferragens e peluches. Nós podemos doar o que quisermos, desde peluches, ferragens e portas a bugigangas analógicas dos anos oitenta.
Imagino que as exposições de 2025 venham a estar discretamente povoadas da matéria que Francisco Duarte Coelho agora faz chegar aos artistas, num gesto generoso e também ele criativo. Trata-se de uma bela novidade de Ano Novo.
O autor escreve segundo a antiga ortografia