É deveras surpreendente que, a acreditar nos números que foram divulgados, os portugueses tenham consumido mais neste período de Natal do que em anos anteriores.
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Perante esta estranha conclusão faz sentido perguntar se a crise não terá atingido ainda os bolsos das famílias portuguesas, ou se não existirá consciência do "aperto de cinto" que foi decretado, e que se começa a sentir a partir de hoje. Ou será antes que, sabendo que o IVA ia aumentar, resolvemos antecipar as compras?
É óbvio que há muitos anos o consumismo tomou conta do Natal que deixou de ser uma festa religiosa e de família, com uma componente báquica razoável, para se transformar numa festa pagã, materialista e orgiástica, em que se celebra o consumo. Em muitas casas, a única coisa que resta do presépio são as prendas, muitas vezes inúteis, em número excessivo, e que atingem valores incomportáveis e muitas famílias vêem-se mesmo na necessidade de se endividarem para cumprirem com o que julgam ser uma obrigação, imposta pela sociedade e pelos seus apelos ao consumo. Pagam-se, assim, as dívidas da falta de afecto e da ausência de solidariedade que são contraídas durante o ano.
Por outro lado, é óbvio também que a crise ainda não chegou a todas as famílias. Para já, atingiu a administração do Estado, os mais desfavorecidos, os que perderam os seus empregos e os que viram os seus negócios arruinados pela conjuntura mas ainda não afectou a carteira de muitos portugueses que continuam a viver com a convicção de que os seus direitos adquiridos e garantidos não serão postos em causa, além de que, e a exemplo das empresas que anteciparam os lucros para evitarem o agravamento fiscal, também terá havido muitas famílias que optaram por antecipar as suas compras, de forma a poderem, ainda, beneficiar de um IVA a taxa mais reduzida.
Hoje, passadas as festas, com a gula esgotada e a bolsa depenada, enquanto as crianças tentam arrumar os presentes inúteis que receberam e os aterros vão lidando com o excesso de papel encerado, entramos no novo ano. Os impostos já aumentaram e o mesmo sucedeu com muitas das nossas despesas correntes. O rendimento disponível será menor e, se a economia entrar em recessão, haverá cada vez mais desemprego. As certezas que ainda tínhamos, e que nos tranquilizavam, transformar-se-ão em dúvidas.
Entramos num período de reajustamento, como acontece ciclicamente em qualquer economia. Nestes tempos mais próximos, as formigas recorrerão às suas reservas, ao passo que as cigarras terão de sobreviver com uma dieta mais magra. Se tudo correr bem, um dia destes a tempestade dará lugar à bonança. É essa luz ao fundo do túnel que nos deve guiar a todos. Mas para que essa luz não seja uma miragem, todos nós teremos de fazer muito mais do que aquilo que temos feito. Teremos de trabalhar mais e de consumir menos, teremos de fazer sacrifícios e de ajudar aqueles que já não os podem fazer porque sofrem as agruras da crise que ainda não nos atingiu. E, por muito que as formigas tenham razão de queixa das cigarras, os tempos que se avizinham exigirão, para além de uma mudança de comportamentos, um espírito de solidariedade que contribua para aliviar o drama dos mais desfavorecidos e para reforçar a coesão social que, como nunca, parece ameaçada. É nestas circunstâncias, de privação e ansiedade extremas, que as sociedades são testadas. O melhor que nos pode acontecer, em 2011, é mostrarmos que continuamos a saber navegar as borrascas, e que somos melhores e mais solidários em tempos de crise.