Corpo do artigo
O sistema político português resistiu aos efeitos destruidores da chantagem do "pensamento único" que pretende não haver alternativa às políticas de austeridade e empobrecimento coletivo entusiasticamente aplicadas pelo Governo anterior, visando a destruição de todas as conquistas sociais arduamente conseguidas desde a Segunda Guerra Mundial e a liquidação da base social das democracias europeias, em benefício do capital financeiro ou, como preferem dizer, da "vontade dos mercados". Esta ideologia global e totalitária contaminou setores influentes da social-democracia e do socialismo democrático europeus, resignados à simplicidade empírica e vulgaridades do senso comum - "back to the basics" - em que se resume a sua doutrina. Este afunilamento do campo de opções políticas determinou a liquidação do partido socialista grego e o crescimento assustador da extrema direita xenófoba na Grécia e no resto da Europa. Em Portugal, o sistema partidário sobreviveu porque o PS mudou de direção, construiu uma alternativa e garantiu a liderança da Esquerda. A Direita, resignada por fim à sua derrota eleitoral, só agora vai entrar em convulsão.
A perda da maioria absoluta nas eleições de outubro era para os partidos da direita - O PSD e o CDS de Passos Coelho e Paulo Portas - um resultado previsível. Por isso tentaram, por todos os meios, minimizar o desastre eleitoral que se avizinhava e contando com a cumplicidade ativa da presidência da república, prolongaram a legislatura por mais seis meses. Meio ano que lhes permitiu tentar concluir a liquidação ao desbarato do património empresarial do estado mas, sobretudo, lhes serviu para conferir alguma verosimilhança à miragem de uma "recuperação económica" tão efémera que se iria desvanecer no dia seguinte às eleições. Por outro lado, a ameaça de expulsão da moeda única pendente sobre a Grécia - apenas abortada no último momento, nas circunstância dramáticas que todos recordamos e com elevados custos para o martirizado povo grego - constituía um poderoso instrumento de propaganda eleitoral que a Direita usou descabeladamente. A encenação foi tão cuidada que nem dispensou a exibição humilhante da ministra das Finanças portuguesa, sentada ao lado do ministro das Finanças alemão como um troféu de caça, para exorcizar a alegada indigência do Governo grego - e de todos os críticos da austeridade! - numa conferência de Imprensa, em Berlim.
Apesar de minuciosamente urdido, o plano falhou. A vontade democrática expressa nas eleições de outubro acabou por encontrar a fórmula governativa capaz de corporizar a mudança política reclamada nas urnas: um governo minoritário do PS apoiado numa aliança parlamentar maioritária que congrega todos os partidos da Esquerda. Uma solução que oferece oportunidades inéditas de valorização da democracia parlamentar que nunca foram suficientemente exploradas ao longo da nossa história constitucional.
Um exemplo eloquente foi o "orçamento retificativo" aprovado de urgência no dia 23 de dezembro, para acudir ao inesperado "buraco" do Banif. O diploma contou apenas com os votos favoráveis do PS e de mais 3 deputados do PSD da Madeira, o que só foi suficiente graças à abstenção do PSD. Teria sido mais lógico e mais justo que tivesse sido aprovado com os votos favoráveis do PSD e do CDS, desfrutando, quando muito, da abstenção complacente do PS... Porque o "buraco", além de cuidadosamente escondido até ao último momento, não parou de crescer ao longo destes últimos 3 anos, deixando o novo Governo sem tempo nem alternativa para procurar uma solução menos penosa para os contribuintes. Era ao Governo anterior da coligação PSD/CDS que competia responder pela sua gestão ruinosa e negligente da crise do Banif, levada ao extremo com deliberada má-fé e flagrante calculismo eleitoralista. De facto, o PS só pode ficar grato pelos votos contrários dos deputados do BE, do PCP, dos Verdes e do PAN, tal como eles os justificaram no debate que precedeu a votação final, na Assembleia da República. O novo ano de 2016 promete-nos bons combates e transporta bons augúrios.
Deputado e professor de Direito Constitucional