Antes porco na autoestrada que Virgolino na PJ
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Em março de 2000, Virgolino Borges foi acusado de furto. Levado para a sede da então Direção Central de Combate ao Banditismo, ali foi mantido durante 34 horas e agredido a murro, a pontapé e com uma tábua nos pés - para que confessasse, pois então. Virgolino foi absolvido. Mas não esqueceu e tentou que fossem responsabilizados os seus agressores. Só porque recusou desistir, lá chegou quase 13 anos depois a sentença do Tribunal Criminal de Lisboa, ainda passível de recurso. Dois inspetores da PJ foram condenados a dois anos e meio de prisão (com pena suspensa) pela prática do crime de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. E os agora inspetores-chefes da Polícia Judiciária terão de pagar mensalmente (cada um) 80 euros para um fundo que depois reverterá a favor da vítima. Feitas as contas, a prática do crime de tortura custa em Portugal 2400 euros em prestações suaves: é uma espécie de pagamento da tortura em duodécimos. E, antes que esqueça, os autores continuam em funções e não foram sequer sujeitos a procedimento disciplinar.
Salvo uma ou outra honrosa exceção, ninguém ligou rigorosamente nada a este episódio. Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes.
Estejamos porém descansados, porque a nossa "humanidade" está de boa saúde e recomenda-se. Se não, vejamos.
Há mais ou menos uma semana ocorreu um acidente na A1. Um camião carregado de porcos que se dirigia para o matadouro despistou-se; alguns dos animais morreram, outros andaram por ali a vaguear até serem capturados.
Enquanto vários tentavam apanhá-los, um dos porcos levou um pontapé de um agente da GNR, e as imagens do acontecimento foram captadas por alguém e colocadas no YouTube. Imediatamente desencadearam uma vaga de indignação "cívica", não faltando quem qualificasse o tal agente como o porco da história ou quem se propusesse como singela retaliação pontapear na cabeça o energúmeno. Pressurosa, a instituição veio afirmar que o comportamento de um "não poderá afetar a imagem e a credibilidade de todos os que, com dedicação e sentido de missão, servem a GNR"; e acrescentou que "a defesa do direito de todos, incluindo dos animais, tem sido uma das principais preocupações da instituição".
Parecem-me de louvar estas tomadas de posição, assim como é de aplaudir que a GNR gaste os seus recursos a "investigar" caso tão monstruoso e depois sancione com severidade o seu agente. De facto, esta história é uma bênção - mostra que andamos de cabeça perdida e perdemos a noção do ridículo.
Quer isto dizer que a defesa da dignidade humana é incompatível com o respeito pelos animais? Claro que não. Quer isto dizer que quem defende os animais está errado ou tem uma escala de valores discutível? Claro que não, antes pelo contrário. Como em tudo, é uma questão de medida. Na verdade, se um cidadão é sujeito a tortura e um porco leva um pontapé, é doentio que só a tragédia do porcino cause revolta e só aí se levante a turba a ulular. E que os corações só palpitem pelo porco e nada ou quase nada por alguém espancado por agentes públicos a murro, a pontapé e com uma ripa de madeira durante um interrogatório.
As nossas hierarquias andam invertidas. Aquilo que nos move, estranho anda.
A miséria dos outros humanos, ou a violação dos direitos básicos do próximo, encontra-nos cada vez mais embotados e indiferentes. Da mesma e paradoxal sorte, o mal que aconteça a um animal exalta-nos a um ponto próximo do paroxismo.
Humildemente, não vou entrar sequer na querela sobre a existência (ou não) de um catálogo de direitos "fundamentais" dos animais ou sobre a sua eventual personalidade jurídica - embora personalidade, como facilmente se inculca, tenha como matriz a pessoa. Concedo aliás tudo isso para arredar objeções. Mas estes dois episódios, conhecidos quase em simultâneo, e a discrepância chocante das respostas que desencadearam só confirmam que devo ser um conservador reacionário, ultrapassado e impenitente. Em minha defesa, só consigo invocar Molière: "a hipocrisia é um vício na moda e todos os vícios na moda passam por virtudes".