Corpo do artigo
Estava aqui parado, como num cruzamento rodoviário, sem decidir por que estrada perigosa do mundo ia eu continuar hoje. As florestas do Canadá ardem pela América toda, e fumam e enegrecem também os céus do Portugal, o Atlântico gelado enterrou, ou melhor, hidratou violentamente numa implosão as cinco pessoas ricas que iam num submarino de papelão arrepiar-se com as ferrugens do Titanic. Já no Mediterrâneo nem sabemos se sobram restos humanos dos 500 refugiados que se afogaram como pobres. Mais a Leste, a mentira da Rússia e da sua guerra contra a Ucrânia continua no caminho da progressiva estupidez, cada vez mais autofágica - Putin acabará por roer as suas próprias entranhas de assassino.
Mas volto atrás ao cruzamento, rodo o volante à direita e meto a primeira, segunda, terceira, quarta e quinta mudanças, vou a França ver este mistério do jovem Nahel, morto aos 17 anos porque conduzia sem carta e um polícia, ainda por cima mentiroso, porque deu-lhe um tiro à queima roupa, ali no peito, foi o que me pareceu no vídeo, há um filme a desmentir a mentira policial, e tudo por causa de um reles controlo rodoviário, uma falta de carta, e agora está esta França dos franceses filhos de franceses, filhos de outros franceses filhos do norte de África, e que já não são dali nem de lá, jovens amotinados a queimarem carros e comboios, partirem montras, a pôr cidades a ferro e fogo, mais uma vez por culpa da estupidez racista de polícias que usam sempre a arma, nunca usam a cabeça.
Porque os grandes problemas do mundo começam muitas vezes com questões minúsculas. O segredo está em não lhes dar fogo com o fole. Na semana passada, no Campus de Justiça de Lisboa, assisti ao julgamento de um jovem por falta de carta de condução de mota. Quer dizer, o jovem não foi, mas achei exemplar, e boa, a forma como o polícia falou do ausente. Disse que estava, com dois colegas da corporação, a fazer um controlo de rotina na faixa bus. Mandaram parar uma mota e o rapaz confessou, sem problemas, que não tinha carta de condução. Levaram-no para a esquadra, o rapaz assinou o que tinha a assinar, deu razão aos guardas, e foi-se embora. Sem bofetadas, conversas desagradáveis e muito menos tiros de pistola.
Que interesse tem isto? É que o polícia contou que, nos dias a seguir, não estando propriamente a fazer a mesma operação, mas fazendo o seu trabalho, disse ele:
- Já vi passar o mesmo jovem várias vezes na mesma mota, pela mesma faixa.
Mas não sentiu qualquer impulso violento, pelo contrário, o polícia mostrou que há coisas que é preciso levar com sangue-frio e bom-senso.
- Não o mandou parar?, perguntou-lhe a procuradora.
- Ainda estava um bocado longe. E eu não sou desses de me andar a atravessar à frente de motas e de carros, no meio da estrada, foi o que disse este polícia cidadão.
E agora lembrei-me de outro caso cómico e antigo. Aquele homem desencartado que, no tribunal, durante as festas dos Santos, como agora, jurou, jurou, por todos os anjos e santos que só tinha pegado no carro para o desviar para a berma, porque a mulher estava mal-disposta. Só tinha conduzido dois metros porque ele nunca conduzia nunca, nunca, nunca, juro, juro, juro, disse o homem.
Quando o julgamento acabou, e sei isto porque o escrevi, fui atrás dele numa curiosidade mórbida, convencido de que ainda ia ouvir a discussão com a mulher. Pois em vez de ser a mulher a entrar, ele abriu a porta do condutor do seu carro mal estacionado no parque dos advogados, exactamente em frente do tribunal, sentou-se ao
volante, meteu a primeira, segunda, terceira, quarta e quinta mudanças e seguiu nas calmas para casa, sem nunca, nunca, mas nunca chegar a conduzir.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Jornalista