<p>O termo - apocalipse - saiu da boca do Pedro Ivo Carvalho, um dos chefes de redacção aqui da casa, quando, anteontem, percorríamos as fotos, às centenas, que as agências têm colocado na linha retratando a tragédia do Haiti. Procurávamos uma para a primeira página do JN, para a discutir com o editor de fotografia. Exercício difícil, dada a enormíssima oferta. Exercício doloroso, dada a violência das imagens que nos apareciam, em catadupa, pela frente. E ele, de repente, sai-se com esta: "Isto é o Apocalipse".</p>
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Etimologicamente, apocalipse significa revelação. O termo foi sendo deturpado ao longo dos anos - e hoje todos o tomamos, no mundo ocidental, como sinónimo de fim do Mundo. No Haiti aconteceram as duas coisas: revelação e fim.
Fim. Não do Mundo, mas de parte de um povo que vive nas trevas há muitos e muitos anos. Das trevas brotam horror e dor. É isso que brota, minuto a minuto, daquela esquecida ilha das Caraíbas.
Revelação. De um povo esquecido, vítima da instabilidade política causada durante anos a fio pelo clã Duvallier, que meteu as mãos num balde de sangue, sem dificuldade, para controlar o país (um óbvio eufemismo para definir o Haiti). E vítima da miséria social: bem mais de metade da população (cerca de nove milhões de pessoas) vive com menos de dois dólares por dia.
O tempo é, obviamente, de acção. O Mundo, ou uma boa parte dele, mobilizou-se rapidamente para ajudar os vivos e enterrar os mortos. É um bom sinal. Desde logo, porque a sensação, tantas vezes sentida e vivida noutras catástrofes naturais que arrasaram povos e em intervenções de ditadores sanguinários que agiram impunemente, de que o que se está a passar fica lá bem longe e não chega para incomodar o nosso pacato quotidiano, essa sensação parece ter sido ultrapassada pela enormidade da tragédia haitiana.
A tarefa é ingente. A sensação de ser impossível lutar contra o tempo para salvar o que pode ser salvo deve corroer o coração de todos quantos estão no Haiti a ajudar o que sobra daquele povo que tem a vida e a alma desgraçadas.
Tudo isto é verdade. Mas nada disto deve fazer-nos esquecer que há uma reflexão a merecer espaço nas nossas cabeças. Actuar a jusante não basta. Por muito que isso reduza a nossa pena e salve pessoas, talvez seja necessário encontrar forma de a comunidade internacional conseguir agir a montante, ajudando, entre outras coisas, a erguer infra-estruturas que não desabem ao primeiro sopro.
O sismo foi violento, mas a foice só tomou conta de tantas vidas porque tinha o trabalho facilitado. A nossa obrigação é complicá-lo, única forma de evitar novos apocalipses.