A cidadania é coisa complexa. Pode até ser um estado de alma puro. Mas também pode ser uma necessidade primária. Em todas as circunstâncias, de uma luxuosa alma democrática até à pobreza de quem não alimenta suficientemente o estômago para poder ter alma, há sempre uma parte da cidadania que só depende de nós.
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Por ela, muitos milhões foram encarcerados, torturados, interditados de trabalhar e exilados por esta Europa que amanhã vai a votos. E foi em nome de uma Europa sem fronteiras que outros tantos milhões resistiram aos demónios dos racismos, dos nacionalismos e dos terrorismos.
É, antes de tudo o mais, esta memória histórica da Europa que nos deve impelir a sermos cidadãos de corpo inteiro, o que obviamente implica ir depositar o nosso voto nas urnas que amanhã estarão ao nosso dispor.
Desleixarmos esta nossa condição de eleitores está evidentemente à mercê de milhentos argumentos, infelizmente nenhum deles com força capaz de remover a questão essencial: não há nenhuma opinião que não possamos expressar pelo voto, seja a favor deste ou daquele e até contra todos os candidatos que nos propõem. No limite, todos sabemos que podemos concordar e apoiar ou discordar e protestar e até rejeitar por inteiro as opções que nos apresentam nos boletins de voto.
Sinceramente, não me parece que, em bom rigor, possamos dizer: não vou votar porque são todos iguais ou não vou votar porque isto não muda.
Podemos estar descoroçoados com o dia a dia da nossa democracia, da nossa Europa, e a confiança em quem nos representa ter batido no fundo. Mesmo assim, em democracia não temos outro modo de intervir tão eficaz quanto o de votar. Votar e votar e votar até... garantir que vivemos em paz connosco próprios.
Sim, porque votar é, antes de tudo o mais, uma questão de respeito para connosco e os nossos, aqueles que direta ou indiretamente dependem sobretudo das nossas ações.
Dispensarmo-nos de votar é o mesmo que sermos pais, não irmos às reuniões de escola dos nossos filhos e um dia acordarmos sem resposta para o facto de termos criado inadaptados ou mesmo marginais. E nesse dia resolvermos esse caso não connosco próprios mas com a má escola, o mau professor, o mau ministro.
Sabemos como se desenvolve essa lassidão e como se formam os mestres em passa-culpas. Porque todos, algum dia, participamos em reuniões de cidadania, dos condomínios aos clubes de futebol. E pudemos verificar que é da caterva de ausentes que emergem os grandes moralizadores públicos, aqueles que na hora do percalço e do insucesso nos surgem em primeiríssimo plano da pantalha televisiva para nos dar a grande lição de moral sobre a coisa falhada. E sem vergonha. Porque para eles a moral é sempre a moral dos outros.