Arbitragem e património público (2)
As contrapartidas económicas negociadas em 2004 entre o estado português e a empresa fornecedora de mais de 200 carros de combate para as Forças Armadas Portuguesas não foram cumpridas por essa empresa, desvirtuando assim os termos do próprio concurso internacional uma vez que a escolha da empresa adjudicatária dependeu quase exclusivamente da proposta de contrapartidas que apresentou. O caso não revela apenas uma típica situação de incumprimento contratual mas sim contornos que indiciam a prática de crimes como falsificação e/ou desaparecimento de documentos e tentativa de facturação fraudulenta, envolvendo cumplicidades entre prevaricadores e representantes oficiais do prejudicado. Vejamos.
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A legislação europeia sobre aquisição de equipamento militar obriga os fornecedores a entregar contrapartidas ao estado contratante, nomeadamente insuflando na economia do país um valor igual ao da perda de investimento decorrente dos gastos com esse equipamento. Em 2004 Portugal adjudicou à empresa austríaca Steyr (posteriormente adquirida pela americana General Dynamics) o fornecimento de 320 viaturas VBR Pandur (depois reduzido a 260) para substituir as antigas Chaimites.
A adjudicação foi decidida com base na proposta de contrapartidas apresentada pela Steyr/General Dynamics que previa uma parceria industrial com uma empresa nacional para a produção das próprias viaturas Pandur. Essa parceria envolvia, designadamente, a reabilitação de uma unidade industrial escolhida para essa produção, a exportação de viaturas para países em que Portugal tivesse especial capacidade de penetração (antigas colónias africanas, Magrebe, América Latina, entre outros) e a transferência da respectiva tecnologia e do Know-How adequado.
O valor económico global das contrapartidas (aceite expressamente pela adjudicatária) era de 516.316.000,00 euros, ou seja, cerca de 150% do valor da aquisição das viaturas que era de 344 milhões de euros, aproximadamente. Ou seja, uma despesa de 344 milhões de euros iria gerar na economia nacional mais de 516 milhões. A BAFO (Best And Final Offer) da Steyr dizia mesmo, expressamente, que «[n]ós queremos dar à economia portuguesa 705,8 milhões de euros». A parceira escolhida foi a FABREQUIPA, uma empresa de metalo-mecânica pesada do Barreiro, mas o VAN (Valor Acrescentado Nacional) gerado na nossa economia é inferior a 20 milhões de euros, pois, dos mais de 516 milhões prometidos, a adjudicatária apenas cumpriu, até ao momento, cerca de 18 milhões.
Por sua, vez, o estado, em vez de obrigar a adjudicatária a cumprir aquilo a que se obrigara, parece mais interessado em tentar «convencer» a beneficiária do programa de contrapartidas (a Fabrequipa) a aceitar a situação de incumprimento. A empresa chegou a ser pressionada para participar num esquema tipo «carrossel de facturas» que permitisse à adjudicatária demonstrar contrapartidas que nunca existiram. Essas pressões foram feitas, inclusivamente, por alguns elementos da Comissão para as Contrapartidas (curiosamente, uma entidade criada para zelar pelo seu cumprimento), ao ponto de os advogados da Fabrequipa lhes recordarem que tal comportamento constituía a prática de um crime.
O estado (ou quem age em nome dele) tem descurado os interesses nacionais pois, além de pagar o preço das viaturas sem se certificar que a adjudicatária cumpre as suas obrigações contratuais, não accionou ainda uma garantia bancária no valor de quase 130 milhões de euros constituída justamente para garantir o cumprimento dessas contrapartidas. Talvez esteja à espera de que essa garantia caduque. Entretanto, todos os documentos relativos ao programa das contrapartidas desapareceram misteriosamente do processo do concurso público, o mesmo sucedendo a outros documentos igualmente importantes.
Claro que os litígios emergentes de um negócio público-privado como este, onde são evidentes os indícios de que os representantes da parte pública estão aliados à parte privada, só poderiam ser resolvidos através de uma arbitragem, ou seja, com advogados transformados em «juízes». Foi o que aconteceu neste caso, com mais esta duas «garantias»: o litígio pode ser decidido por um só Advogado/«juiz» e em definitivo já que as partes podem renunciar ao direito de recurso.