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São o horror de Lawrence da Arábia. Sem elas, talvez não houvesse trauma bastante para o grande homem convulsionar as arábias, sem elas talvez os Sete Pilares da Sabedoria ficassem por escrever. Quem sabe sejam unicamente ficção - não investiguei se a cena do filme em que o servo Daud morre em areias movediças é factual. Mas não me interessa, a boa ficção dá sempre boa realidade.
Nem me interessa que a ciência (tirânica) desvalorize o medo das areias movediças, que existem sim, mas pífias - apenas quando liquefeitas, dando a ideia de que só os idiotas morrem nelas.
Ora, aqui sou mais ficcional do que outra coisa, e nunca aleguei ser algo mais do que um idiota com qualidades e boas letras. Não sou por isso imune às areias movediças. Muito menos estando de férias na praia dos Tomates.
Vejam bem: a praia é um trabalho de mestre que demorou milénios, uma ocorrência natural à disposição das nossas imaginações. Antes de nós, a praia não tinha sido inventada. Agora inventámos que é para descansar, para nadar, para ler - e para conversar após o beijo de olá, que se prolonga areal fora para os sociáveis.
Como é uma invenção nossa, quero inventá-la melhor. Qualquer praia é a minha Arábia a pedir um revolucionário. Queria ser homem à altura da minha imaginação, mas onde param os otomanos? Onde está a revolução? Que é das orquestrações inglesas? Em nenhum sítio: cada qual tem a praia que merece, não a areia com que sonha.
Aqui há bandeira amarela. Aquela mulher que berra; aquele homem que só se molhou até aos joelhos quando seria mais fácil levar com a onda na barriga que o antecede; aquela criança que corre e tropeça; e um mar de stand-up paddle.
Perante isto, desisto de grandes imaginações e deito-me na areia. Primeiro é berço, depois escalda. E dentro de minutos, quando me convencia de que a praia é apenas praia, a areia move-se sob mim. Quer o meu corpo. Cómodo nesse engolir, sinto-me descer ao fundo do sono; escondidamente para dentro de mim e da areia.
No sono arenoso e movediço respiro bem, algures no sítio fundo para onde a areia me levou. A praia toda sou eu dormindo. O mar inteiro eu a dormir. A gente toda, até os banhistas, diálogos de um sonho meu.
Claro que nunca terei qualquer grandeza de Lawrence da Arábia, nem sequer grandeza do servo Daud, mas ao contrário destes - eu que narro mais do que faço - sou mestre e senhor das areias movediças. Já é bastante para um dia de praia.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)