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Sei que o dia 13 de Fevereiro parece ter sido há treze séculos, nesta cavalgada quotidiana em que o dia de ontem se passou num tempo antigo. Mas há apartes regimentais, no nosso Parlamento, que nem treze séculos depois são toleráveis.
Num debate sobre a inclusão no Ensino Superior, deputados do Chega insultaram a deputada Ana Sofia Antunes, do PS, por ser cega. Não sei de que estranho âmago de uma pessoa, de que sítio obscuro saem os insultos “drogada”, “pareces uma morta”, e “és uma aberração”. Sairão certamente de um lugar infecto.
Ana Sofia Antunes disse que, mais do que a desrespeitarem a ela (e já não seria pouco), os insultos ofenderam “todas as pessoas com deficiência, rotuladas como incapazes, inábeis ou incompetentes”.
O meu irmão chama-se Martim e tem trissomia 21. Nunca o ofenderam na rua nem nos cafés ou em sítio nenhum. Sempre encontrei uma generosidade imensa, até carinho, pelo Martim. E mesmo na escola, excepto alguma desconfiança e desconhecimento típicos das crianças, nunca ninguém o insultou.
Aconteceu agora na Assembleia da República, através da deputada Ana Sofia Antunes. Nela eu vi insultado o meu irmão. Por ele ser inimputável, a Assembleia da República tem o dever especial de o proteger, de ser a casa que lhe dá segurança, onde lhe garantem todos os direitos. Devia ser a casa dos frágeis, não dos que fragilizam. A casa dos que são servidos, não dos que se servem.
Mas segundo os deputados do Chega, o Martim, que não sabe escrever, parece um drogado. Mas segundo os deputados do Chega, o Martim, que não sabe ler, parece um morto. Mas segundo os deputados do Chega, o Martim, que não sabe tantas coisas mais, é uma aberração.
Entretanto, relembrando casos anteriores, como os ataques a Isabel Moreira e outras, as restantes bancadas parlamentares apelaram à urbanidade. É uma palavra redonda. Até um papagaio ao qual ensinaram truques pode demonstrar urbanidade. E faria certamente intervenções mais dignas do que os deputados ordinários que tiveram a ousadia de chamar aberração a alguém com deficiência.
Não basta apelar à urbanidade. O Código de Conduta dos Deputados à Assembleia da República, um documento limpinho e cheio de boas intenções, já o faz. Há que apelar a sanções concretas, tal como acontece noutros países.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia