Anteontem, ouvimos a primeira-ministra da Escócia a renunciar ao cargo, dizendo que o fazia por um "sentido de dever e de amor. Amor duro, talvez, mas, ainda assim, amor: pelo partido e, acima de tudo, pelo país". Há um mês, a primeira-ministra da Nova Zelândia também se demitiu e confessou que queria passar mais tempo com a sua família. Ambas reconheceram não ter mais energia para desempenhar as suas funções. Ao escutar estes discursos, pensei se isto seria verbalizado deste modo por um homem. Julgo que não.
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Há uns anos, numa conferência sobre jornalismo televisivo, uma conhecida produtora da noite informativa de um canal de televisão, quando procurava explicar os processos de escolha dos convidados em estúdio, dizia que, em caso de recusa, um homem geralmente alegava compromissos de agenda ou a inoportunidade do momento, uma mulher falava mais da dificuldade de compatibilizar a participação num debate televisivo com as obrigações familiares, assegurando muitas vezes que iria procurar apoio para os filhos que lhe permitisse sair de casa à noite. Na verdade, um homem e uma mulher abeiram-se de forma muito distintiva daquilo que são as exigências da vida em família e colocam isso em público em registos diferenciados.
É verdade que Nicola Sturgeon renunciou ao cargo de primeira-ministra e à liderança do partido nacionalista escocês porque há um contexto político desfavorável às suas pretensões relativamente à independência da Escócia e isso, juntamente com alguns escândalos próximos do seu Governo e uma inflação a escalar, ajudou a esta tomada de decisão. No entanto, a forma como tudo é comunicado resulta de uma situação de género a que Sturgeon e Ardern não renunciam. Fazem bem, porque os constrangimentos a que hoje uma mulher está sujeita determinam muito daquilo que faz. Mesmo aquelas com posições de grande responsabilidade e de notoriedade.
Não sendo defensora do uso das emoções, nem do trânsito permanente entre esferas pública e íntima por parte daqueles que detêm cargos públicos, penso que há momentos em que isso permite perceber muita coisa. Quando Ardern disse que queria ter tempo para ir buscar a filha à escola e que isso era incompatível com o que fazia, houve muitas mulheres que se identificaram com essa vontade. Muitas, para cumprir essa função, desistem de fazer outras coisas. Confessar que determinados cargos exigem muito de alguém poderá ser entendido como uma fraqueza. Eu escuto isso como uma força, porque sei que nesta assunção cabe o esforço de ir compatibilizando trabalho e vida familiar. Todos os dias.
Professora associada com agregação da UMinho