"Lá de casa mandam dizer que aqui está a encomendinha." É com esta frase que a ama Helena entrega o menino Zezito à escola onde irá aprender as primeiras letras. O professor pega o menino ao colo, conversa com a ama e exibe a régua, porque "um mestre sem palmatória é um artista sem ferramenta". Nestes dias de início do ano escolar do ensino Básico, há pelo país fora milhares de encomendinhas, com lágrimas e mochilas novas.
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O conto em que relata a chegada ao mundo "primeiro posto na arriscada milícia das letras" chama-se "Para a Escola" e faz parte de "Os Meus Amores", hoje disponível em e-book. Foi escrito por Trindade Coelho no dia em que terminou em Coimbra a licenciatura em Direito, em 1891.
Muita água correu por debaixo das pontes do ensino desde que o escritor, jurista e pedagogo republicano José Trindade Coelho entrou pela mão da ama na escola transmontana de Travanca, Mogadouro. A escola, percebe-se pelo texto, tinha alunos das várias classes da primária - ou de diferentes anos de escolaridade do primeiro ciclo do ensino Básico, como hoje se diz.
A propósito do Dia Mundial da Alfabetização, ontem assinalado pela Unesco, ficou a saber-se que 793 milhões de adultos não sabem ler nem escrever em todo o Mundo, principalmente no sul da Ásia e na África subsaariana. Dois terços do total de analfabetos adultos são mulheres.
Há 67 milhões de crianças e 72 milhões de adolescentes que não frequentam escolas, por viverem em ambientes de guerra e fome ou por serem forçados a trabalhar.
Olhamos para estes números e percebemos que a Unesco tenha escolhido como linhas de acção a defesa da paz e a igualdade de géneros. E sentimo-nos reconfortados por Portugal aparecer no mapa da Unesco com o azul escuro que pinta os países onde o analfabetismo é inferior a dez por cento.
Discutimos por cá outros números, outras questões nestes tempos de arranque do ano lectivo. Deixámos longe as percentagens que nos envergonhavam em pleno século XX, no analfabetismo como na desigualdade entre homens e mulheres, e as jovens são mais escolarizadas do que os rapazes.
Cento e cinquenta anos passaram desde o nascimento de Trindade Coelho, pedagogo e autor de livros escolares, nos caminhos abertos por João de Deus. A palmatória não faz parte do equipamento dos professores, o ensino é obrigatório até ao 12.º ano, as crianças conhecem ambientes escolares antes dos seis anos. Enumerar as diferenças seria demasiado longo para caber neste espaço.
O que não mudou foi a emoção com que os pais entregam os filhos no primeiro dia de escola, nem o espanto e hesitação das crianças. As encomendinhas.