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As leis sobre incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos visam reforçar a transparência, integridade e imparcialidade daqueles no exercício das respectivas funções. A CRP remeteu para o legislador ordinário a regulamentação de tais matérias. Assim, a Lei 9/90, de 1/3, estabeleceu aquele regime, sendo sucessivamente actualizada de modo a abranger novas situações susceptíveis de integrar impedimentos ou incompatibilidades e a estender o mesmo regime aos titulares de altos cargos públicos. A questão que ora se discute nos média e nos areópagos políticos recai, creio, sobre o conteúdo do art.o 9.o, n.o 2, a), da Lei 52/19, que enumera os actuais impedimentos e incompatibilidades dos titulares de tais cargos, determinando que estes, "... por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10% do respectivo capital social ou cuja percentagem de capital detido seja superior a 50 000 euros, não podem... participar em procedimentos de contratação pública...", adiantando o seu n.o 3 que tal regime se estende às empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente ou descendente em qualquer grau e colaterais até ao segundo grau... Em minha opinião, o segmento normativo "não podem participar em procedimentos de contratação pública" carece de uma interpretação restritiva de forma a não limitar, de modo insuportável e inadmissível, preceitos da CRP que consagram o direito à livre iniciativa económica e igualdade de oportunidades, sem que em compensação atribuísse aos lesados uma qualquer alternativa. A interpretação literal deste normativo viola os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação, ínsitos na CRP. De outro modo, a interpretação do preceito colocava, ainda, em causa, sem fundamento, a integridade, verticalidade e honestidade de todos os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, sob a suspeita de todos serem capazes de "traficar" o cargo que exercem. No mesmo sentido vai o Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 19/9/19. Embora o mesmo se debruce sobre o teor do artigo 8.o da Lei 64/93, a questão jurídica é a mesma ora em causa. Conclui que estão arredados "da sua esfera de abrangência os casos da a), n.o 2 do art.o 8.o em que os concursos públicos foram abertos e tramitaram perante outros órgãos do Estado... situados fora da esfera da acção do governante" com relações familiares à empresa envolvida no contrato público. O PR propôs à AR que procedesse a uma interpretação autêntica do normativo. O TC foi também solicitado a pronunciar-se sobre a mesma questão. É do maior interesse público e relevância jurídica, política, social e económica a solução que vier a alcançar-se. Afinal, o país não é tão grande que não se venha, frequentemente, a tropeçar num alegado impedimento ou incompatibilidade do titular de cargo político.
a autora escreve segundo a antiga ortografia
Ex-diretora do dciap