As instituições e as redes na sociedade tecno-digital
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Agora que o Prémio Nobel da Economia de 2024 foi atribuído aos economistas Daron Aracemoglu, Simon Johnson e James Robinson pela sua investigação sobre o papel das instituições no progresso e prosperidade das nações, importa perguntar como é que as instituições vão lidar com este caos vertiginoso e contingente em que prevalecem os mercados, as redes e as plataformas e pecam por defeito o espírito crítico, o bom senso e o tempo-confiança, necessários para gerar laços fortes de natureza socioinstitucional?
Esta questão parece-me muito pertinente porque ela interliga mercados, redes-plataforma e instituições, a base triangular das sociedades desenvolvidas. A matéria-prima das instituições é, como sabemos, a confiança nas normas, regras e boas práticas e estas necessitam de um tempo de reflexão e amadurecimento que não se confunde com os reflexos instantâneos de reação e ajustamento. Ou seja, sem as dimensões espaço-tempo-confiança são as capacidades reflexiva, participativa e empática da democracia política liberal que estão em causa
As tecnologias digitais e a inteligência artificial geram desmaterialização, desintermediação e desinstitucionalização, logo, uma erosão crescente do papel das instituições que são, como sabemos, a base da concertação e do compromisso, da moderação e da confiança entre as partes na democracia política representativa. Esta quebra da moderação e da confiança gera, ainda, uma corrosão do centro político moderado e uma polarização e radicalização do espetro político-partidário. Onde antes havia intermediação e mediação há, agora, uma confusão entre os fins e os meios, isto é, as plataformas e as redes sociais, que são instrumentos importantes, substituem as missões e os programas da política mais institucional pelo marketing e a encenação políticos em benefício de agentes populistas e demagogos.
É aqui que nós estamos. Neste modernismo financeiro e tecno-digital em que vivemos já ninguém sabe muito bem onde colocar os limites do racional e do emocional, do razoável e do bom senso que a política deve sempre cultivar. É difícil, por exemplo, entender porque se investe tanto em economia financeira e tecnológica e tão pouco em humanidade e ciências humanas e sociais. Na verdade, temos, hoje, de um lado, a hegemonia oligopolista dos grandes grupos financeiros e tecnológicos, e de outro, uma distopia tecno-digital em pleno funcionamento que nos convida a todos, simples cidadãos, através dos dispositivos tecno-digitais mais variados, a fazer a grande viagem até à colónia virtual onde todos seremos muito felizes. Neste contexto, é extraordinariamente pertinente a questão de saber onde fica o espaço-tempo-confiança que é imprescindível à reforma das instituições para configurar os checks and balances que são absolutamente necessários às novas buffer institutions.
Esta questão é tanto mais pertinente quanto estamos a proceder, rapidamente, à desmaterialização e desintermediação do estado-administração, hierárquico e vertical, enquanto transferimos para muitas comunidades online muitos dos processos e procedimentos que antes informavam as anteriores instituições. Esta grande transição das instituições convencionais, concebidas e construídas pelo estado-silo-vertical do antigo regime, para as instituições do estado-rede-plataforma do novo regime de administração, é uma tarefa estrutural de grande alcance que muda radicalmente, no plano analítico e comportamental, a relação entre o ator o sistema. É aqui que nos encontramos, hoje.
Para compreender melhor a assimetria perigosa que existe entre o capitalismo hegemónico, financeiro e tecnológico, e o défice de capital social consubstanciado nas novas instituições, basta passar em revista a ideologia rentista deste capitalismo oligopolista que remonta aos anos oitenta do século passado, com o surgimento do neoliberalismo. Este capitalismo neoliberal, financeiro e muito desregulado, acumulou e concentrou tanta riqueza e poder e gerou tanta desigualdade social que, progressivamente, acabou por minar os laços sociais das instituições que vinham da fase anterior do chamado capitalismo contratual. Em boa verdade, no século XXI já não colhe a axiomática ortodoxa da economia neoclássica que invocava as leis pretensamente universais do equilíbrio geral, da mão invisível e do progresso económico que os mercados e a concorrência perfeita assegurariam. Com efeito, se há uma norma universal do neoliberalismo iniciado nos anos oitenta do século passado, ela refere-se à concentração da riqueza e do poder e à desigualdade social. Vejamos, então, essa economia rentista.
Em primeiro lugar, as rendas financeiras com origem na capitalização e especulação de ativos financeiros em bolsa. Em segundo lugar, as rendas tecnológicas com origem no oligopólio das Big Tech e nos mercados biface que elas organizam. Em terceiro lugar, as rendas de espaço com origem na metropolização das grandes cidades e na especulação imobiliária. Em quarto lugar, as rendas fiscais com origem na doutrina da extraterritorialidade, isto é, na ocultação e dissimulação de rendimentos de grupos empresariais espalhados por vários paraísos fiscais. Em quinto lugar, as rendas socio-laborais com origem numa crescente precariedade das relações laborais e sindicais. Por último, as rendas políticas com origem na atividade de lobbying dos grupos de pressão, no seu acesso privilegiado aos corredores do poder e nos casos de corrupção ativa e passiva que daí decorrem.
Aqui chegados, cabe perguntar, perante a hegemonia do capitalismo rentista e da sociedade algorítmica em ascensão, que instituições estas duas tendências pesadas nos reservam se a democracia política liberal soçobrar perante regimes autocráticos cada vez mais iliberais e ameaçadores?
As instituições são um produto da democracia representativa e da divisão tripartida dos poderes, dos seus pesos e contrapesos, mas as organizações, na sua extrema variedade, são um produto da sociedade civil que reagem aos estímulos e aos custos transacionais que as instituições proporcionam. Ora, as interações entre instituições e organizações formam um processo circular de hétero-regulação onde todos estamos implicados. É neste processo circular de retroação constante em modo de cocriação, coprodução e cogestão que emergem as novas instituições participativas e colaborativas da sociedade tecno-digital, a começar por uma nova geração de bens públicos e de bens comuns e respetivas externalidades positivas. Julgo, por isso, que precisamos, urgentemente, de nos reencontrar com as dimensões espaço-tempo-confiança da nossa vida coletiva em sociedade, pois a desconstrução a que assistimos destrói uma parte importante do sistema de produção e do regime de trabalho associado e, de uma maneira geral, do sistema de relações sociais no seu conjunto. De resto, uma franja importante da sociedade, corre, mesmo, o risco de soçobrar com a digitalização, a automação e as máquinas inteligentes e a inteligência artificial. Este triângulo mágico ameaça perturbar a nossa vida coletiva, desencadeia uma forte corrosão do carácter, põe em causa os direitos humanos e a nossa sanidade mental, e corremos mesmo o risco de os inativos crónicos começarem a aparecer em vez dos desempregados temporários. Estamos perante um verdadeiro problema intergeracional e uma mudança civilizacional de grande alcance.
Como vamos viver no futuro, ainda não sabemos. Sabemos, porém, que o futuro se decide hoje, perante uma realidade que é cada vez mais paradoxal. Vamos viver na distopia tecno-digital orwelliana, acolhidos no seio de um grande irmão que dá pelo nome de regime autocrático, vamos optar por uma utopia praticável, pelo regime do bom senso e do bom gosto e aproveitar as contradições reflexivas do sistema democrático ou vamos refugiar-nos na colónia virtual e nos ambientes simulados e usar as vestes dos nossos heterónimos avatares, nossos irmãos, para tratar dos nossos problemas??
No preciso momento em que se assiste à banalização do mal e à digitalização das guerras, abre-se uma linha de investigação fundamental para as ciências humanas e sociais, a saber, a reinvenção das instituições normativas convencionais do regime antigo e sua articulação com a força motriz das comunidades online que a sociedade em rede transposta para o século XXI, se quisermos, o confronto entre a distopia algorítmica da sociedade digital e a utopia prática da sociedade humanista e democrática. Fica o desafio de uma grande transformação, de um novo Momento Polanyi no século XXI.