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Há um mês, reportam agora os média, pelos hospitais desse país fora, oitocentas e trinta e duas pessoas continuavam internadas embora tivessem alta do ponto de vista clínico. Não podendo viver sozinhas, precisam de vaga num lar, nalguma instituição, precisam que a Segurança Social as acuda, precisam de alguém.
Durante a pandemia, o esforço nacional também passou por diminuir os chamados casos sociais, desencantando vagas para estas pessoas fora dos hospitais. Era a fase em que tudo ficaria bem - com salvas de palmas às dez da noite e outras boas-vontades -, a fase da provação em que, por alguma indulgência mágica, as nossas falhas seriam perdoadas e nós sobreviveríamos imaculados, desde que fizéssemos uma horta, amassássemos a massa do pão e nos vacinássemos.
Anos depois, foi-se o esforço, e aqui chegámos, piores do que nesse tempo a acudir aos desamparados. Em 2021, 2175 pessoas foram admitidas em estruturas da Segurança Social - em 2024, apenas 923, menos de metade.
"A noção que temos é que, durante a pandemia, os internamentos sociais foram uma prioridade e havia pessoas só destacadas para isto. Depois deixou de ser uma prioridade", disse esta semana ao "Público" o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. "O aumento é consistente, não há melhorias, todos os anos piora".
Sem dinheiro, sem idade, sem família, os que sempre estiveram abandonados mais abandonados estão - com cada vez menos respostas do sistema. O caso mais antigo é o de um homem de cinquenta e dois anos que está internado nestas condições há 1682 dias. Quatro anos e meio num hospital.
Ao ler os números, eu bem tento tomar as medidas à solidão, essa coisa sem chão, sem tecto, sem nada. Essa coisa sem. E até agora não as tinha, mas hoje sei-as exactas: a solidão mede noventa centímetros de largura por dois metros de comprimento, o tamanho standard de uma cama de hospital.
O internamento destas pessoas comove a ponto da arte. Em Abril, a pintora Mafalda d'Oliveira Martins (por acaso, minha mulher) inaugurou uma exposição no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em que painéis monumentais mostravam retalhos imaginados dessas vidas. A meio, parada, incapaz de se levantar, incapaz de ir a sítio algum, uma estátua sentada numa cadeira observava o seu próprio diaporama.
E assim estão, neste momento, oitocentas e trinta e duas pessoas, confinadas às suas solidões de noventa por duzentos centímetros, escondendo dentro de si os painéis monumentais das suas vidas - e em suspenso, quais estátuas.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

