No ano passado, 28 mulheres morreram por violência doméstica e, até aos primeiros dias de março, 11 mulheres sofreram o mesmo destino.
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Durante séculos, esse foi um destino pouco questionado, um direito do homem, tolerado e até instigado pela ordem social. Portugal mudou muito nas últimas décadas, mas o espaço familiar tende a conservar quadros mentais que julgaríamos desaparecidos. Teremos esquecido que o voto só se tornou universal para as mulheres depois de 1974? E que os maridos tinham direito a abrir a correspondência delas? E que elas precisavam da autorização deles para sair do país ou tirar a carta de condução? O mundo do trabalho tornou-se uma libertação para as mulheres, apesar de significar quase sempre uma dupla jornada de trabalho.
Em 1972, três mulheres afrontaram a sociedade patriarcal publicando um livro que desencadeou um processo judicial. "Novas cartas portuguesas", de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, foi uma pedrada no charco, pela denúncia da violência, da discriminação, da ausência de liberdade, dos efeitos da guerra, da feminização da pobreza e, acima de tudo, pelo questionamento dos papéis sociais e sexuais atribuídos às mulheres.
O julgamento das três Marias transformou-se numa acusação ao regime e a sentença que as iliba, proferida em maio de 74, uma condenação do passado e um caminho para o futuro. As mulheres entraram em força no mundo do trabalho, acederam às universidades, tornaram-se maioritárias nas formações científicas e técnicas, mas continuam arredadas do topo da decisão e, sobretudo, carregam o sentimento de culpa por não conseguirem conciliar todos os papéis.
Em mais do que um acórdão, os tribunais questionaram e até duvidaram de mulheres autónomas e independentes poderem ser vítimas de violência doméstica. Basta traçar a recente história da visibilidade das mulheres para o compreender. As mulheres ainda escolhem o silêncio por medo da censura social, medo da família destruída, medo de ficarem sozinhas com os filhos, medo da violência, medo, medo, medo. É o que muitas vezes as trava, até ser tarde. As mulheres autónomas e independentes também têm medo porque a sua condição ancestral lhes transmitiu que devem aguentar, sofrer, resignar-se, fazer os possíveis e os impossíveis para tudo correr bem. A mudança necessária implica-nos a todos, mulheres e homens, porque nos libertaremos das máscaras da nossa indignidade.
Professora universitária
