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A nossa A1, convenhamos, não é a estrada mais romântica, embora eu veja, ultrapassando-os ou sendo ultrapassado, carros onde se discute e ri, onde se gesticula e canta, onde pais espreitam os filhos nos bancos de trás e casais conversam. Mas os trezentos quilómetros da A1, também convenhamos, não passam sem amor.
No sentido Lisboa-Porto, já depois de Antuã, chega-se a um troço onde duas palmeiras esguias, como acabadas de despir um grande casaco, se erguiam lado a lado. Sempre as conheci desse modo, casaco tirado, chegadas a casa, juntas não se sabe desde quando, apenas separadas por dois ou três palmos. Próximas e separadas o suficiente para sentirem uma atracção irresistível; diria unidas por dois ou três palmos de distância.
Conversavam sempre e sem parar, eu bem via os pássaros passarem de copa em copa como as palavras de boca em boca. Um diálogo constante e impossível igual ao dos casamentos, a conversa das duas palmeiras.
Ainda não referi que eram altas, o que significa que eram velhas e que tinham crescido juntas num pedaço de terreno só delas, antes isolado, há algumas décadas surpreendido pela autoestrada. A da esquerda um pouco mais alta, talvez um pouco mais palmeira homem.
Tendo chegado à altura da velhice, apanharam o bom sol, beberam a boa água, acolheram os ninhos, superaram as tempestades, passaram as estações, enfim, viveram o que vivem as árvores e as pessoas, e continuaram juntas.
Sempre as conheci casadas (para ser sincero, nunca as encontrei afastadas mais do que os tais dois ou três palmos de proximidade), e quase sempre penso nelas quando assisto ao casamento de amigos. Tamanho compromisso, o enraizamento da nossa vida à de alguém, é de tal forma radical, e exige tanta criatividade, perseverança, humor, abnegação, diálogo, entrega e todos os restantes sinónimos de amor - que é apenas próprio de seres inconscientes, como as árvores, ou de seres apaixonados, como as pessoas.
E dá-se isto de curioso nas palmeiras e nas pessoas: a esperança de que, no melhor dos cenários, acabem no pior dos desenlaces. Sozinhos um do outro depois de uma vida bem enraizada. Por isso não pode haver amor sem mágoa, porque sem ela não seria amor. Amar também é sentir a falta de quem está a palmos de proximidade.
Tenho feito muito a A1 nas últimas semanas, quase nunca pensando nestas coisas e sobretudo quase nunca olhando. Mas no outro dia, atento, observava as paisagens que nunca me saem de dentro do espírito, quando me lembrei de que, naquele troço depois de Antuã, agora só se encontra uma palmeira solitária. Consta que a antiga praga do escaravelho matou a outra. Solitária, é a árvore mais bem acompanhada de todo o caminho.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia

