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Por estes dias, a Universidade portuguesa prepara-se para o arranque de mais um ano escolar. A par das preocupações científicas e dos cuidados pedagógicos, surge sempre, por esta altura, o tema das praxes que oficialmente costuma vergar-se a uma abordagem eufemística para não perturbar (muito) os estudantes que lideram práticas frequentemente criminais. Este ano, quem tutela o Ensino Superior resolveu falar mais claro. Mas falta encontrar caminhos que garantam dignidade a todos os caloiros.
Foi em forma de carta que o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior fez saber aos reitores que é urgente travar o abuso e a humilhação das praxes, sendo vital reinventar modos criativos para receber os novos alunos. Manuel Heitor gostaria de ver desenvolvidos programas centrados na cultura e na ciência e, para facilitar isso, autorizou a Fundação para a Ciência e Tecnologia a financiar ações dessa natureza. Excelente reabilitar no espaço público a discussão das praxes, menos estratégico usar dinheiro da investigação para atividades de eficácia nula. Ao contrário do que julga o ministro, não é com cientistas que se neutralizam os praxistas, nem aplicando verbas dessa área a programas de receção aos caloiros. Neste processo, os atores são quem gere a universidade (as reitorias), quem ensina (os professores) e quem faz e quem é alvo de praxes (os estudantes). É neste triângulo que se deve erguer uma ação efetiva, permanente, de proximidade, sem medos e sem cálculos de popularidade.
As reitorias. O ministro Manuel Heitor não pode responsabilizar os reitores por aquilo que se passa fora das universidades, mas pode sensibilizar os responsáveis máximos das academias para não ficarem pelas meias-palavras. Não chega dizer que não se reconhece a praxe, nem tão-pouco os praxistas. Um reitor não pode anunciar que para si as comissões de praxe não existem e ignorar que nos seus campi se multiplicam ruidosas práticas que colocam em causa a dignidade dos seus estudantes. Também não pode assegurar que condena esses comportamentos, quando nenhum dos seus discursos públicos faz nitidamente essa reprovação. É preciso falar de forma inequívoca com as associações de estudantes, exigindo-lhes compromissos que travem práticas de violência exercidas sobre os novos estudantes. Igualmente importante será as reitorias tomarem a sério as queixas que lhes chegam sobre os abusos cometidos. Nomear comissões de inquérito para apurar o que se passou nunca poderá ser um meio para fazer enredar um processo que grande parte das vezes não tem consequência alguma.
Os professores. Beneficiando da proximidade com os estudantes, os docentes, nomeadamente os diretores de curso, terão maior capacidade de alterar comportamentos. O envolvimento dos anos mais avançados de um curso na preparação do acolhimento a quem chega é fundamental, mas não é suficiente. É preciso monitorizar os primeiros dias em permanência. Há uns anos, enquanto diretora de curso de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, criei um grupo informal de estudantes constituído por alunos do 1.º ano (os caloiros) e do 3.º ano (que, por tradição, lideram as praxes) e com eles ia fazendo balanços regulares sobre a integração dos novos alunos. Sentindo-se parte de um processo que se quer equilibrado, os alunos conseguem travar atos impróprios de colegas que rasgam normas. A autorregulação entre os alunos é aqui um dos caminhos mais eficazes, mas as bases têm de ser lançadas pelos professores e devem ser sempre apoiadas por quem gere as instituições do Ensino Superior.
Os estudantes. Eis aqui a peça mais importante de todas. Um praxista apenas tem o seu estatuto legitimado se o caloiro o permitir. É preciso que os novos alunos sintam em permanência que não devem compactuar com gente que muitas das vezes só aparece nas universidades para as praxes. É urgente criar uma onda de profunda indignação em relação a estes ritos por todos os campi portugueses. Os estudantes que iniciam o seu curso têm o direito de sentir que uma instituição de Ensino Superior é um lugar de estudo, de investigação e de ações que promovam uma sociedade baseada em princípios humanistas e comprometida com uma cidadania participativa. É por isso que todos devemos lutar. Sem meias-palavras.
* PROF. ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UMINHO