As pré-existências histórico-culturais e o dispositivo tecno-digital
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A profundidade histórico-cultural do nosso passado é, ou pode ser, um bem comum extraordinariamente precioso se, para tanto, a literacia histórico-cultural da nossa população for acautelada e utilizada para temperar na dose certa a arte da nossa existência quotidiana. Hoje, na terceira década do século XXI, o tempo longo do dispositivo histórico-cultural não se compadece com o tempo curto do dispositivo tecno-digital e esta coexistência, muito assimétrica, não é muito recomendável. E, no entanto, as pré-existências da nossa memória coletiva são o caldo de cultura necessário onde irá beber a nossa passagem por este mundo. Estamos cá há nove séculos, aprendemos a ser portugueses de muitas maneiras, cá dentro e lá fora. Agora, o que é pertinente nesta década do século XXI é saber como respeitamos e transformamos as pré-existências que nos legaram e como as projetamos na cultura do futuro, por que há uma cultura acerca da história do passado e uma cultura acerca da história do futuro. E esta cultura acerca do futuro está, como é claramente percetível, muito ancorada na ideologia e no utilitarismo tecno-digital. Ou seja, a arte da nossa existência e, já agora, a arte de ser português, que hoje, à nascença, tem uma esperança de vida de oito décadas, estão intimamente associadas com a ligação que soubermos fazer entre o dispositivo histórico-cultural e o dispositivo tecno-digital. Nove séculos de um lado, oito décadas do outro.
E qual é o panorama que se nos apresenta em 2025 tendo em vista, justamente, este funcionamento harmonioso entre os dois dispositivos, um mais histórico, outro mais futurista, mas profundamente imbricados?
Vivemos o tempo das Grandes Transições - climática e energética, ecológica e alimentar, demográfica e migratória, técnica e digital, social e laboral, geopolítica e securitária – e anuncia-se uma Grande Transformação (Polanyi, A Grande Transformação, 1944), uma mudança paradigmática de longo alcance cujos efeitos sistémicos não são ainda completamente percetíveis e, portanto, cabalmente apreendidos pelos cidadãos, dada a velocidade alucinante com que os acontecimentos se sucedem à frente dos nossos olhos. Fomos apanhados em contrapé, e aqui reside, talvez, a nossa tragédia dos comuns, pois a velocidade destas transições é de tal ordem que a coabitação, a hibridação e a simetria dos dois dispositivos que referimos não parece possível no tempo curto e médio. Por um lado, a profundidade e espessura do nosso tempo histórico-cultural, bem como a grelha de leitura dos ativos histórico-culturais, não parecem estar, manifestamente, ao alcance da maioria da população, não obstante as múltiplas iniciativas de acesso e
simplificação já empreendidas. Por outro, no polo oposto, o lado lúdico e ligeiro do dispositivo tecno-digital coloca-nos no centro da aldeia global, onde aproveitamos a boleia e o utilitarismo da sociedade algorítmica mesmo que à custa de alguma dose de servilismo voluntário. Ou, dito de outro modo, tenho algumas dúvidas de que este valioso storytelling histórico-cultural de nove séculos seja transferido, como valor acrescentado, para as cadeias de valor das marcas atuais, não obstante a sua digitalização e artificialização poder ser operada de múltiplas maneiras, algumas delas de forma muito imaginativa.
Uma outra faceta desta coexistência entre os dois dispositivos, e não quero ser pessimista, diz respeito ao nosso bem comum maior que é o ser e o estar português nesta década e em todo o século XXI. Não gostaria que o nosso ser português, qual João Ratão, fosse atirado para dentro do caldeirão tecno-digital por ter sido seduzido e ludibriado. E é aqui, justamente, que o angular histórico-cultural, na sua aceção mais larga, se quisermos, uma espécie de buffer institution operada sob a forma de modelo de linguagem e de interpretação geral da arte de ser português no século XXI, nos poderia ser muito útil. Acresce que somos um país muito pequeno e aberto e inteiramente mergulhado num processo nuclear de fusão glocal cujas características fundamentais são algo inquietantes, por exemplo, o declínio demográfico conjugado com a gentrificação das principais áreas urbanas e metropolitanas, a imigração desregulada e a emigração de muitos portugueses, o empobrecimento relativo e uma turistificação crescente do território, a mudança de propriedade de ativos nacionais para mãos estrangeiras, a iliteracia tecno-digital e a perda potencial de muitos empregos devido à automação e IA. No fundo, somos um país em trânsito, uma pequena economia aberta, uma sociedade em vias de hibridação multicultural e em risco iminente de colisão que as Grandes Transições já anunciam e cujo multirrisco coloca em perigo aquilo que é a arte de ser português no século XXI
Seja como for, quero crer que não é fácil desistir de nove séculos de história, embora também não acredite que este gigante adormecido possa reemergir a qualquer momento. Julgo, porém, que é absolutamente necessário acautelar a retaguarda histórico-cultural e socio-antropológica, a arte da nossa existência, para não cair no servilismo voluntário do dispositivo tecno-digital que, insidiosamente, procede à reprogramação das nossas mentes por via das novilínguas dos modelos de linguagem e troca os fins pelos meios por intermédio do mercantilismo e normalização das nossas emoções e sentimentos. Não troquemos, pois, a ordem dos termos da equação. Em primeira instância, a narrativa histórico-cultural traça a linha de rumo, os fins do projeto coletivo
e os objetivos do governo de missão, em segundo lugar, o sistema operativo articula os mercados, as instituições e as redes enquanto instrumentos de governança territorial, finalmente, o dispositivo tecno-digital operacionaliza os meios e os recursos que são necessários. Quanto ao resto, só há uma forma de prever o futuro, é começar desde já, no presente, a realizá-lo. E o presente é o passado todo mais a liberdade criativa do presente acerca do futuro. A terminar, lembro, a propósito, o lema vencedor de Évora, Capital Europeia da Cultura, 2027, O vagar ou a arte da existência. E assim será, pois devagar se vai ao longe.