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Os acontecimentos ocorridos em Setembro de 2010 no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira e divulgados esta semana, em vídeo, pelo jornal Público envergonham-nos a todos. Um recluso, com claros sinais de perturbações mentais, que se recusava a limpar a cela e chafurdava, havia semanas, nos seus próprios excrementos, foi alvo de uma acção de brutalidade levada a cabo pela «tropa de elite» do sistema prisional português. A Direcção da cadeia, em vez de enviar técnicos de saúde mental ou educadores para o adequado tratamento psicológico ou psiquiátrico, mandou vários guardas do Grupo de Intervenção de Segurança Prisional (GISP), uma força de choque anti-motim, criada para resolver situações de grande violência.
O resultado, documentado no filme, é um carnaval de violência física e psicológica contra um homem indefeso que vestia apenas umas cuecas. Primeiro, mandaram-no levantar-se da cama onde estava sentado cabisbaixo, de seguida mandaram-no virar-se para a janela e depois, com ele de costas, dispararam uma arma que o derrubou com um potente choque eléctrico ao mesmo tempo que ele lançava um lancinante grito de dor. De seguida, aproximaram-se da vítima e deram início a uma sessão continuada de actos de humilhação. Sublinhe-se que nunca o recluso evidenciou qualquer sinal de violência, de resistência ou sequer de desobediência. Pelo contrário, mostrou-se sempre colaborante e submisso, obedecendo a todas as ordens e respondendo a todas as perguntas.
Este episódio alerta-nos para a cultura de violência de que está imbuído o sistema prisional português, em vez de uma cultura de ressocialização. Sem prejuízo dos cuidados com a segurança e da necessidade de reprimir a violência, deveria privilegiar-se uma cultura que aproximasse os guardas prisionais mais dos educadores que deveriam ser do que da polícia militarizada que são. As prisões deveriam ser escolas de civismo e de cidadania que reeducassem os reclusos para eles não reincidirem, mas muitas delas são escolas de criminalidade, onde, frequentemente, delinquentes ocasionais se transformam em criminosos profissionais e, pior ainda, pessoas facilmente recuperáveis acabam por se transformar em verdadeiros facínoras devido à violência a que continuadamente são sujeitos.
Os reclusos são pessoas condenadas a uma pena privativa da liberdade e não à perda da sua dignidade. No entanto, muitos deles são contaminados com doenças mortais, sodomizados e até mutilados ou mortos. Tudo isso, quase sempre num ambiente de promiscuidade aviltante. Ainda recentemente visitei uma cadeia onde doze ou treze reclusos de todas as idades se aglomeravam numa cela com poucas dezenas de metros quadrados. Alguém poderá imaginar as consequências de se viver durante meses ou anos nessas condições?
Nas prisões portuguesas as leis da República e a própria Constituição cedem perante os regulamentos do sistema penitenciário e os despachos dos seus dirigentes ou até perante a lei dos mais fortes. Se há uma frase que pode ilustrar a realidade de muitas prisões é aquela que Dante, em A Divina Comédia, colocou à entrada do Inferno: Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!
Perante o conhecimento daquele vídeo, a Ordem dos Advogados participou criminalmente contra os guardas e o director da prisão de Paços de Ferreira e requereu um exame às faculdades mentais do recluso a efectuar no Instituto de Medicina Legal. Exigiu também ao Ministro da Justiça a exoneração do Director-Geral dos Serviços Prisionais enquanto principal responsável por uma cultura penitenciária que permite este tipo de actuações. Decidiu ainda propor à Ordem dos Médicos, à Ordem dos Enfermeiros e à Ordem dos Psicólogos para que, em conjunto com a Ordem dos Advogados, efectuem uma averiguação sobre as condições de saúde mental nas prisões portuguesas. Há aí inimputáveis a cumprirem penas e a serem reprimidos com violência em vez de serem tratados clinicamente.
Também por isso é urgente a jurisdicionalização integral do processo de execução de penas, com os inerentes postulados processuais, nomeadamente um efectivo direito de recurso e o respeito pelo princípio do contraditório. O recluso deve ser ouvido antes de proferida qualquer decisão que lhe diga respeito e deve poder recorrer dela. É imperioso alargar o apoio judiciário ao reclusos, de modo a que possam ser representados por um Advogado em todas as fases do processo de reclusão.
O índice de desenvolvimento de um país também se avalia pelas prisões que tem e pela forma como são tratados os seus presos.