As reformas por fazer...
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Pode gerar alguma perplexidade que, simultaneamente com o diagnóstico da grave crise de representação democrática que aqui apresentei, na semana passada, fosse também advogada a abolição da eleição direta do Presidente, por sufrágio universal, e a extinção das suas atribuições atuais para demitir o Governo e dissolver a Assembleia da República.
Este aparente paradoxo merece de facto explicação mais detalhada. A eleição do Presidente por sufrágio universal apenas se justificou, como foi dito, por dois motivos. Em primeiro lugar, a pretensão de excluir do "monopólio" partidário da representação democrática a escolha do Presidente da República. Embora os partidos políticos não estejam impedidos de promover e apoiar os candidatos da sua preferência, a iniciativa das candidaturas apenas depende da vontade de um mínimo de 7500 eleitores (artigo 122.0º da Constituição) e pode ser candidato a Presidente qualquer cidadão maior de 35 anos, desde que possua, originariamente, a nacionalidade portuguesa (n.° 1 do artigo 124.0 da CRP).
Em segundo lugar, foi aqui determinante o preconceito ancestral de que os partidos políticos estão fatalmente condenados à mesquinhez e ao sectarismo. Um preconceito, enfim, que ignora a evidência antropológica de que, em democracia, representantes e representados tendem a partilhar as mesmas virtudes e defeitos. Com tais motivações, somos obrigados a concluir que aquilo que o preconceito encobre é apenas uma arcaica desconfiança face à democracia, ao pluralismo político e à transparência dos procedimentos que lhe são inerentes: no essencial, o confronto normal de ideias e propostas e a regra de decisão por maioria - um "homem", um voto.
A estes dois preconceitos que ainda hoje subsistem (alimentados pelas próprias forças partidárias que, infelizmente, tudo têm feito para preservar a sua atualidade!...) acrescia um terceiro motivo de ordem prática: a necessidade de arranjar uma fórmula que prevenisse previsíveis sobressaltos no delicado processo de transição da fase de legitimidade "revolucionária" do Movimento das Forças Armadas para uma democracia "civil" mediada pelos partidos políticos e perfilhada pela Constituição de 1976. Isso não iria impedir a reeleição de um Presidente militar - o general Ramalho Eanes - em 1981, mas o problema ficou definitivamente ultrapassado com a vitória de Mário Soares nas eleições presidenciais de 1986 e nem o resultado surpreendente obtido pelo PRD nas eleições legislativas de 1985 - um partido populista de inspiração presidencial, criado em nome da ética e com um destino fruste - conseguiu travar a inelutável evolução parlamentar do regime.
Apesar de a influência presidencial na condução do nosso destino comum ter vindo a enfraquecer gradualmente desde então, a instituição permanece no texto da Constituição despida de qualquer préstimo e perverte o funcionamento do sistema político, alimentando ambiguidades, perturbando a identificação das responsabilidades políticas de legisladores e governantes e amplificando os vícios de representação democrática que tanto se deploram. A "regeneração" destes, contudo, não se opera milagrosamente pela intervenção messiânica do Presidente, como se tem visto! Reclama, isso sim, remédios que alarguem as oportunidades de participação cívica e o pluralismo, que promovam a transparência do funcionamento interno dos partidos, que aproximem os eleitos dos eleitores, descentralizem competências para o poder local e que cumpram, finalmente, o imperativo constitucional da criação das regiões administrativas.
Odéfice democrático cura-se com mais poder democrático e novos centros de decisão submetidos a controlos democráticos de proximidade. Por isso o âmbito territorial das CCDR oferece a dimensão adequada de regiões entendidas como unidades de planeamento e desenvolvimento económico e social que compensem o centralismo irracional que se vem agravando ao longo de sucessivos governos. Com a criação das regiões extinguem-se os distritos que hoje apenas subsistem como círculos eleitorais. A criação de círculos uninominais no âmbito da reforma do sistema eleitoral e a criação das regiões no âmbito da reforma da administração territorial podem não implicar o desaparecimento dos distritos mas obrigam evidentemente a ajustamentos das suas delimitações atuais e à redefinição do seu papel. Desafios, enfim, que continuam à espera de um ímpeto reformador.