Corpo do artigo
Se não tiver a sensibilidade de uma parede de betão carcomida pelo tempo, cada um de nós já se sentiu solidário com um conhecido, um amigo, um vizinho, um desconhecido ou, até, com um povo. Normalmente, isso acontecerá quando um facto da vida, uma circunstância terrível, uma tragédia ocorrem e olhamos para o sofrimento do outro com a compaixão suficiente para nos conseguirmos sentir "o outro".
Há depois tragédias tão horríveis que escapam às teias do tempo, que se soltam e passam a vaguear de forma intemporal, recordando-nos a pequenez e, outras vezes, a nossa capacidade para fazer mal ao tal "outro".
Na sexta-feira, comemoraram-se os 70 anos do bombardeamento de Dresden. Realmente, entre 13 e 15 de fevereiro de 1945, e sob o efeito de uma sucessão avassaladora de ataques aéreos lançados pelas aviações americana e britânica, a cidade foi, literalmente, arrasada. Calcula-se que, no mínimo, tenham morrido 25 000 pessoas naqueles ataques (há estimativas muito, mas muito mais elevadas). E as fotografias mostram uma cidade assassinada, em que só se mantém de pé, aqui e ali, o esqueleto daquele que foi um edifício.
Muitas das vítimas morreram no imenso braseiro em que se transformou a cidade. Os 1200 bombardeiros da RAF e da USAAF que participaram nos quatro raides lançados durante aqueles três dias sobre Dresden despejaram perto de 4000 toneladas de bombas explosivas e incendiárias sobre o burgo. Daí resultou, entre outras consequências, a destruição total de mais de 33 km2 do centro e de outras partes da cidade. Para termos uma noção, a cidade do Porto tem pouco mais de 40 km2.
Brennus bem o sabia quando impôs a regra aos romanos. Numa guerra e noutras coisas da vida, vae victis, ai dos vencidos! Talvez isso explique por que motivo no imediato pós-segunda guerra mundial, ninguém insistiu excessivamente no que teria levado ao bombardeamento tão impiedoso e desproporcional de uma cidade. Desde então, no entanto, Dresden transformou-se num símbolo do extremo a que pode ser levada a violência e as consequências que produz.
Nos nossos dias, mal veria como poderia sequer admitir-se a necessidade militar daquele ataque, com aquela brutalidade exemplar. É verdade que ainda hoje circulam as teorias mais díspares. O ataque teria sido pedido pelos soviéticos, para travar e eliminar reforços alemães que se preparavam para resistir na frente leste. O ataque teria sido uma demonstração de força perante Estaline, alguns dias depois de (mal) concluída a conferência de Ialta. O ataque teria sido motivado por isto, o ataque teria sido justificado por aquilo.
Hoje, repito, pela desproporção, pelos meios usados (bombas de fragmentação, bombas incendiárias), pelo caráter indiscriminado - que nunca permitiria distinguir combatentes de não combatentes - o bombardeamento de Dresden teria, em qualquer caso, de ser qualificado como criminoso: foi um grave crime de guerra.
Podia aquilo ter ficado um cemitério, uma espécie de memorial à loucura humana e suas vítimas. Mas, não. Os alemães arregaçaram as mangas e lançaram-se ao trabalho. No centro, reconstruíram como "era" e, em minha opinião, de forma feliz. A sociedade civil (pessoas anónimas, empresas) tomou em mãos a reconstrução da maravilhosa Igreja de Nossa Senhora, a Frauenkirche. Pedra a pedra, recuperando tudo o que restara daquelas noites em que o Inferno passou, e decidiu pernoitar, em Dresden. Pedra a pedra, mesmo. Recorrendo-se, se necessário, a algumas das espantosas obras que se podem ver na Galeria dos Pintores em que o edifício estava admiravelmente reproduzido.
O resultado é esplendoroso. Em 2005, sessenta anos depois da destruição, a Igreja voltou a erguer-se, altaneira, no centro de Dresden. É, certamente, uma das mais belas e espantosas igrejas europeias, com o seu formato pouco habitual, aquelas bancadas imensas e claras e aquele mar de luz e de madeira cor de mel. Nela está representada a vontade inquebrantável, o amor pela beleza e pelo espírito. E está também representado, espero, o perdão e a reconciliação.
Tudo aquilo que, infelizmente, não está representado nos extremismos que, a partir de Dresden, têm agora como alvo o Islão e quem o pratica. E tudo aquilo que, como se vê pelos combates ferozes na Ucrânia, não conseguimos aprender.
Agora, talvez se perceba melhor o título do artigo; e por que razão também podemos ser alemães.