Marx postulou que o capital multiplicado por processos financeiros em mais capital, sem uma passagem que seja pela sua conversão em bens produtivos, acaba por desaparecer.
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Tenho questionado muitas personalidades da nossa vida pública sobre a forma como a crise nos vai afectar. Ninguém consegue ser concreto. Nos Estados Unidos foi tudo claro e brutal. Onde em Portugal há promessas de Fundos Imobiliários de contorno obscuro, na América, os endividados com compras de casa viram os bancos a tomar conta dos activos dados como garantia. Na maior parte dos casos, as próprias propriedades sobreavaliadas. Agora há notícia de que o Capitalismo volta a funcionar com o mercado imobiliário ressuscitado devido às vendas de propriedades retomadas pelas empresas financeiras que querem liquidez. As famílias que tinham alguma poupança real estão a adquirir a massa falida de outras famílias, colocada no mercado pelos bancos a preços mais realistas. A América é um Continente. Há centenas de milhões de famílias. A desgraça individual consegue ser absorvida pelas colossais dimensões da sociedade e nota-se pouco. Como se perdedores e destituídos se dissolvessem na paisagem. Nestes meses de crise bairros inteiros ficaram despovoados porque os Jones tiveram que emigrar para a Florida ou Califórnia em busca de terreno mais fértil na esperança de que com uma ou duas colheitas pudessem regressar à promessa de prosperidade. John Steinbeck contou tudo isso nas Vinhas da Ira, onde nos faz viajar com uma família desalojada, os Joads, por um subprime qualquer durante a grande depressão de há meio século. Nos dias que correm a história é a mesma. Os Joads são os Jones de hoje. Vão-se embora. Deixam atrás de si campos de mártires urbanos do crédito mal parado em que as lápides são letreiros a dizer - Vende-se. (Curioso: as empresas imobiliárias aqui e lá são as mesmas). Mal o carro da família atulhado com o espólio não hipotecado desaparece na estrada rumo a mais uma tentativa do sonho americano, o bairro falido começa a ser recolonizado pelos Smith, que como na historia da formiga e da cigarra, algures nas suas vidas, pouparam mais e gastaram menos e saem da crise com uma casa melhor. À vista, vai tudo continuar na mesma. De facto pelo que leio já está tudo a ficar na mesma. As referências iconograficas do subúrbio americano retomam os elementos habituais. Crianças, cães, relvas aparadas com jardins que transitam de uns para os outros sem barreiras visíveis mas hermeticamente separados por obstáculos de convenções, dogmas financeiros, religiosos ou étnicos que são bem mais impenetráveis que muros. O parque temático do bem-estar aparentemente contínuo, recompõe-se. Está a haver no mercado imobiliário americano, dizem os técnicos, uma correcção. Os preços desceram porque os Jones ou os Joads estão na estrada colocados à força no Quadro de Mobilidade Especial dos crédulos e desprovidos. Qual é o seu destino? Não interessa, o mercado está corrigido. Na Sic Notícias, Odete Santos lembrou que Marx postulou que o capital multiplicado por processos financeiros em mais capital, sem uma passagem que seja pela sua conversão em bens produtivos, acaba por desaparecer, esfumando-se em inflação. Este processo, feito à escala planetária em operações vazias de conteúdo real, está a fazer uma reedição das Vinhas da Ira traduzida em muitas línguas. Creio que, brevemente, será lançada em português.