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No encerramento do Congresso do PS, no último fim de semana, António Costa pronunciou um discurso histórico que selou a fidelidade do partido à sua vocação reformadora e aos valores da solidariedade, do internacionalismo e da social-democracia europeia que vibraram intensamente nas palavras de Manuel Alegre e que constituem a genuína inspiração dos pais fundadores do socialismo democrático, de Antero de Quental a Mário Soares.
Importa não esquecer que este poderia ter sido o congresso da resignação. Da submissão à continuidade das políticas que a esmagadora maioria dos portugueses rejeitou nas eleições legislativas de outubro. Da renúncia ao entendimento com uma Esquerda parlamentar que, pela primeira vez em 40 anos de democracia, se dispôs ao diálogo e ao compromisso para engendrar uma real alternativa de Governo. Porventura, teria sido mais fácil desprezar tanta esperança e tão corajosa abertura. Mas o PS teria pago um elevado preço por tamanha traição, ficaria irremediavelmente dividido, dilacerado por ressentimentos e ajustes de contas, desacreditado perante os cidadãos, resignado a acolitar o Governo que prometera abater... e condenado a viabilizar as políticas que denunciara. E, é claro, sobraria o pior para o país, cada vez mais pobre, humilhado e sem esperança.
Devemos, por isso, uma palavra de gratidão à comparência de Francisco Assis no palco do congresso. Este ciclo político não se poderia encerrar devidamente sem a intervenção corajosa que ali proferiu. Excetuando, para ser exaustivo, a exigência radical de Ricardo Gonçalves - "crescimento já!" - e a anedótica diatribe tauromáquica contra o Bloco de Esquerda e todos os que não se resignam a admitir que a tortura de animais mereça a qualificação de espetáculo público, a verdade é que sem o testemunho de Assis, a falsa querela da recusa de legitimidade democrática a um Governo que "representa" a vontade da maioria dos deputados eleitos, num sistema político parlamentarista, não teria ficado definitivamente arquivada.
Ao fim da tarde de sexta-feira, o congresso abriu com um programa de debates sugestivamente intitulado: "Portas abertas". Participei no painel moderado por André Freire, sobre o tema "Governo de Esquerdas: a importância das alianças sociais e políticas - caso português no contexto europeu". O título é longo mas a apresentação foi curta e convincente. André Freire recordou a genealogia europeia das alianças de esquerda, do Front Populaire, em 1936, e da resistência à ocupação nazi, em França, até à eleição de Mário Soares para a presidência da República, em 1986. Demonstrou, com estudos de opinião, como os eleitores dos partidos da Esquerda, ao contrário dos respetivos dirigentes, esperavam há muito que eles soubessem entender-se. Acrescentei que, para lá das incertas conjunturas económicas, é fundamental que a aliança de Esquerda perdure, que a governação se mostre capaz de romper com o velho bloco central de interesses, aplicar outras políticas, e que tenha o tempo que precisa para apresentar resultados.
Este congresso foi também uma oportunidade mágica para rejeitar o fatalismo desse Mundo atormentado pela nomeação de Donald Trump como candidato presidencial do Partido Republicano, pelo risco de que a Grã-Bretanha abandone a União Europeia, pela impunidade das medidas antidemocráticas dos governos da Polónia e da Hungria, pela indiferença face à multidão de refugiados que desesperadamente tentam alcançar a Europa, pela insanidade do presidente do Eurogrupo ou do ministro das Finanças alemão que pretendem aplicar sanções à França, à Itália, à Espanha e a Portugal... por desvios decimais ao tratado orçamental!
Mas durante três dias, o Parque das Nações transfigurou-se naquela remota aldeia de bravos gauleses que - conforme a narrativa de Goscinny e Uderzo - nada temiam exceto que o céu lhes pudesse cair em cima da cabeça... e que recusaram submeter-se às legiões romanas que, sob o comando de Júlio César, em vão tentaram dominar a Gália inteira. Como reconheceu o presidente do Parlamento Europeu perante os delegados ao congresso, "o Partido Socialista de Portugal está a dar esperança a toda a família socialista na Europa".
*DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL