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Há uns anos, o general Ramalho Eanes - de quem sou amigo desde a minha adolescência - convidou-me para almoçar. Contou-me várias peripécias dos seus mandatos. Uma, que terá ocorrido nos anos 80, em pleno Bloco Central, envolveu a principal figura do Governo da altura, o dr. Mário Soares, e o então presidente francês François Mitterrand. Soares assegurou ao presidente Eanes que se tratava de uma viagem para um encontro de socialistas europeus, não oficial. Entretanto, Soares arranjou uma maneira de surgir ao lado de Mitterrand como primeiro-ministro, “oficializando” a visita. Para evitar o desagrado de Belém, o gabinete de Soares fez saber que Mitterrand gostaria de poder encontrar-se com Eanes antes de abandonar Portugal. Todavia, existia o pequeno “senão” de (não consigo precisar as horas, mas exemplifico) o presidente francês partir às 18, pelo que Eanes “teria” de o receber antes. Eanes acedeu em receber o homólogo francês só depois das 18 - quando teve agenda -, obrigando Mitterrand a mudar o horário da partida. Porque trago aqui este episódio? O ano político fechou para férias com o pseudo debate parlamentar sobre o “estado da nação” e com um Conselho de Estado. No primeiro, Costa brilhou em todo o seu esplendor autoritário e nepotista como o único e verdadeiro “dono” do país. O sr. Brilhante Dias, que lhe puxa o brilho aos sapatos a partir da farta quanto nula bancada parlamentar do PS, até usou a expressão “o país do PS”, uma imagem que assenta perfeitamente na “situação”. Com 13 demissões de governantes em cima, com o improviso organizado que é o seu Governo, com o tema TAP emparedado e empalhado no relatório vergonhoso que ele mandou escrever, Costa não teve oposição à altura. No Conselho de Estado, falou dois minutos e ausentou-se rapidamente porque tinha um avião para apanhar. Ia ver a bola feminina aos antípodas. Espantado, Marcelo não só não disse (mais) nada, como marcou a continuação do exercício para Setembro. Ou seja, Costa saiu de Belém como saiu de São Bento. Com o regime todo no bolso. Aprendi com Lucas Pires, na cadeira de Ciência Política, a distinção entre autoridade e poder. O país abunda em gente com poder, mas sem um átomo de autoridade que consiste em uma coisa anterior ao poder. É um acto de consciência. Um presidente com autoridade, como Eanes, teria mandado sentar o primeiro-ministro. E ter-lhe-ia dito que só iria apanhar o avião quando acabasse o Conselho de Estado. Costa tem as mãos livres para ser o nosso Lúcio Catilina. Até quando?
Um livro por semana: da “Guerra&Paz”, “A busca do ideal - História das Ideias”, de Isaiah Berlin.
O autor escreve segundo a antiga ortografia