Começaram por dizer que o problema era dos "porcos", com "p" de "Portugal", de "preguiça" ou de "periferia", para insinuar que a crise internacional apenas afectava as margens dispensáveis da Europa - Irlanda, Portugal e Grécia - parceiros menores, indolentes e mentirosos que precisavam de um exemplar castigo, mas que a própria Europa permanecia forte e imune a tais vícios e "danos colaterais".
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Uma tecnocracia incompetente prescreveu o tratamento de choque que em vez dos resultados pretendidos vem agravando a situação dos deplorados "países periféricos" e já contagiou a Espanha e a Itália, disseminando a epidemia que continuará a progredir Europa adentro. Há duas semanas, alertava neste lugar para a urgência de compreendermos o sentido profundo do espectáculo "que os gregos montaram neste último ano, a bem da ilustração dos povos europeus, para denunciar o absurdo e a barbárie das terapias de austeridade que estão agora em moda, a pretexto de erradicar a epidemia mais recente que dá pelo nome de "dívida soberana". Não esperava tão súbita demonstração!
A "democracia" foi inventada na cidade de Atenas há 2500 anos. A palavra e o conceito que ela designa são gregos, tal como a palavra "polis" - o lugar da política. Traduzida para português - nunca é de mais repeti-lo - "democracia" significa "o poder do povo", ou seja, que Atenas devia ser governada pelos seus cidadãos. Tal como se continuou a explicar ao longo de 2500 anos, com tanto sucesso que a maior parte do Planeta adoptou a "democracia" como regime político, só devem governar aqueles que o povo escolheu e apenas enquanto merecerem a sua confiança. Por isso não se estranhou a intenção do Governo grego de auscultar a vontade dos seus cidadãos acerca do "acordo" que acabara de negociar em Bruxelas e que, precisamente, implica o agravamento dos duros sacrifícios exigidos ao longo dos últimos dois anos, contestados por manifestações nas ruas e pela generalização da desobediência civil, por toda a oposição parlamentar e, por fim, também nas fileiras do Partido Socialista que governava com uma maioria cada vez mais precária e temia os sinais de inquietação provenientes das hierarquias militares. Confrontada com a obstinação franco-alemã num receituário que já provou o seu fracasso e perante a fraca solidariedade dos povos europeus sobretudo receosos do chamado "perigo de contágio", a Grécia ousou invocar a democracia contra o demónio da globalização e, por um momento, reconduziu a "política" ao centro da construção europeia. Arrastada na queda do Governo, a proposta do referendo ainda abriu caminho a novas soluções para a crise política grega e fez soar um alarme que ecoou pela cimeira do G20, em Cannes.
Embora a outra escala e com mais discreto colorido, é flagrante o paralelismo entre a crise na Grécia e a crise por que passou Portugal, no princípio deste ano. Inspirada pelo vigoroso discurso de tomada de posse do presidente da República, em Março, toda a Oposição iria rejeitar, em Abril, os termos do acordo que o primeiro-ministro queria levar no dia seguinte a Bruxelas, onde já tinha garantido a sua aprovação. Por se achar que os sacrifícios eram excessivos, com a concordância de todos os partidos ouvidos pelo presidente da República, foi demitido o Governo e anteciparam-se eleições, em nome da democracia e conforme a Constituição. E a Europa esperou mais dois meses pelas eleições em Portugal, tal como sempre tem esperado pelos referendos na França ou na Holanda, pelo Parlamento da Finlândia ou pelo Tribunal Constitucional alemão.
Hoje, o Governo português conta com o apoio de uma maioria parlamentar. As ameaças reais de ingovernabilidade decorrem sobretudo destas políticas de miséria impostas como punição e aceites como inelutável fatalidade pela coligação de partidos que detém o poder. Devem por isso ser eles a assumir as responsabilidades inerentes às políticas que preconizam e seria perigoso para a nossa democracia que o principal partido da Oposição não conseguisse demonstrar que existem alternativas, votando contra o Orçamento do Estado da actual coligação.