É entendimento comum nas democracias constitucionais que a aplicação das penas de privação da liberdade, além da punição do crime, têm a finalidade de reeducar o delinquente e de promover a sua reinserção na comunidade cujas normas violou.
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Portugal orgulha-se do seu pioneirismo na abolição da pena de morte e da prisão perpétua, uma herança justamente assinalada pela Assembleia da República com a atribuição do prémio de direitos humanos à Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos. Contudo, as grades da prisão delimitam espaços cuja opacidade prejudica o escrutínio dos cidadãos e, por outro lado, emerge perigosamente uma cultura cruel e vingativa que despreza a condição humana e reclama o agravamento das penas como remédio para todos os males. Esta conjugação perversa dificulta a aprovação das medidas e a obtenção dos recursos indispensáveis para assegurar o cumprimento da função ressocializadora do sistema penitenciário apesar da evidência de que a invisibilidade e o confinamento tornam os reclusos mais vulneráveis a toda a espécie de abusos.
Por isso, o Governo criou o Mecanismo nacional de prevenção da tortura, em 2013, na sequência da ratificação do Protocolo facultativo à convenção das Nações Unidas Contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. O Mecanismo nacional é presidido pela provedora de Justiça, em cujas serviços foi inserido. O seu antecessor, o Doutor Faria e Costa, dedicou a esta missão um extraordinário empenho com os parcos recursos ao seu alcance.
Ao Conselho da Europa cabe avaliar a situação dos países signatários, através de visitas periódicas realizadas por delegações do Comité europeu para a prevenção da tortura. No final de fevereiro de 2018, há precisamente um ano, o comité divulgou o relatório sobre Portugal, que aprecia a situação das pessoas privadas de liberdade, seja em prisão preventiva ou cumprimento de pena, inimputáveis, jovens internados em centros educativos ou quaisquer suspeitos detidos por autoridades policiais. A apreciação global do Comité do Conselho da Europa reconheceu a importância das reformas levadas a cabo para suprir as deficiências apontadas na primeira missão, de 2013, diagnostica problemas estruturais que persistem e apresenta recomendações que merecem séria ponderação.
Nesta coluna, a 1 de março de 2018, assinalei os problemas e as recomendações feitas sobre a violência policial, os preconceitos racistas e xenófobos, a perceção de impunidade que favorece os comportamentos criminosos e os obstáculos que condicionam a atuação da justiça. No que diz respeito aos estabelecimentos prisionais, o relatório manifestava apreensões quanto à sobrelotação de algumas prisões, às condições de habitabilidade de outras ou ao recurso excessivo a sanções disciplinares de confinamento celular (isolamento). A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, ciente das suas responsabilidades, definiu um programa de ação que está a ser executado. Foi neste contexto, perante o volume anómalo de queixas remetidas pelos reclusos do estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, que a sua diretora foi convidada a prestar esclarecimentos à Comissão parlamentar a que presido. O seu depoimento foi claro e útil: identificou o foco de conflitualidade na unidade de alta segurança do estabelecimento prisional e a dificuldade de assegurar a efetividade de um regime disciplinar árido e rígido com um corpo de guardas prisionais cuja insuficiência se encontra agravada por dezenas de baixas médicas e por transferências que tardam a concretizar-se. Infelizmente, não são problemas recentes nem exclusivos de Paços de Ferreira. As alternativas constroem-se com avaliações serenas, determinação inabalável e projetos ambiciosos.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL