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A insistência da troika na necessidade de baixarmos os salários parece embirração quando Governo, Oposição e parceiros sociais são unânimes: pode ser mais ou menos, directamente ou através da descida do IRS, mas os salários devem aumentar. As razões são várias: um alívio nos sacrifícios efectuados; uma forma de dar sustentação à recuperação da procura interna que tem suportado a subida do PIB nos últimos trimestres; uma conveniência quando se aproximam umas eleições, europeias mas eleições em qualquer caso.
E sobra a perplexidade: então eles não dizem que temos estado a fazer as coisas como deve ser, isto é, como eles querem? O empenhamento do Governo não tem merecido elogios? Os indicadores não têm melhorado, as taxas de juro descido, as exportações crescido? Não se prevê que o PIB cresça no próximo ano, mais até do que se antecipava?
Em termos cifrados aquela mensagem significa que, visto de fora, nada de essencial mudou. Temos feito o que nos mandam, merecemos, por isso, umas palmadinhas nas costas que se podem transformar nuns cachações se ousarmos desviar-nos do caminho traçado. O FMI, mais descarado, já havia avisado: nada do que aconteceu é irreversível. O sucesso é precário, mais transitório do que sustentado. Mas, enquanto o FMI nos desafia a evoluir e melhorar, a troika parece descrer. Ao teimar na descida dos salários está a dizer-nos que a nossa capacidade de competir nos mercados internacionais continua a depender dos custos.
Se não podemos controlar os mercados financeiros nem os juros, ou os mercados de matérias-primas e os respectivos preços, ou os custos dos equipamentos, sugerem-nos que nos voltemos para os factores que, consideram, estão ao nosso alcance influenciar: os salários e os custos de contexto. Desesperançados com o conseguido, insistem nos primeiros.
Tudo o que nos rodeia, o que somos e o que fazemos não se muda, de um dia para o outro, por decreto ou simples voluntarismo. Mesmo quando há urgência, as estruturas resistem e evoluem, em geral, devagar. Como deve ser para que não haja o risco de o edifício desabar. O que a troika nos vem dizer não é nada que nós não devamos saber. A dúvida está em perceber se o que nos propõem permite a evolução ou, pelo contrário, cristaliza a situação actual colocando-nos, a prazo, numa posição ainda mais frágil, num círculo vicioso em que descidas de salários induzem novas descidas. A própria Comissão Europeia tem consciência desse risco quando manifesta preocupação por muitas das ocupações em que os mais jovens encontram emprego, em Portugal, requererem baixas qualificações, não abrindo margem para aprendizagem e ganhos de produtividade, limitando o potencial de desenvolvimento da nossa economia. E esse é, de facto, o problema.
Se os novos postos de trabalho, de menores salários, estivessem a ser ocupados por pessoas mais velhas e/ou com menores qualificações, seria um bom sinal. Ninguém ignora que, entre os desempregados, prevalecem as baixas qualificações, sobretudo à medida que se avança na idade. Muitos são dados como desempregados para o resto da vida, pondo pressão sobre as despesas públicas e, sobretudo, não respeitando um elemento essencial da dignidade humana: o direito ao trabalho. Encontrar-lhes ocupação, trabalho, é um desafio imenso.
Ora, o que os dados dizem é que continuamos a perder esse desafio e a criar um outro: a empurrar para ocupações desqualificadas jovens com habilitações para mais. Um recurso, à falta de alternativas. Um interlúdio até se resignarem a emigrar. Enganam-se as estatísticas: esta gente tem competências para ganhar mais. Os seus salários já são bem mais baixos do que, em teoria, poderiam ser. Mas não são! Romper este círculo vicioso, acelerar essa rotura, vai requerer um empurrão da política pública com incentivos selectivos, apontados à evolução, mas sem entrar em delírios fantasiosos que só nos fazem perder tempo. Somos o que somos e para ser o que queremos ser vai ser preciso um rumo partilhado, tempo e persistência. "Que atrás dos tempos, vêm tempos/e outros tempos hão-de vir", canta Fausto.