O prof. Marcelo Rebelo de Sousa afirmou em entrevista à Antena 1, a propósito da apresentação do livro de José Sócrates, na passada quarta-feira, na Fundação Mário Soares, que, em última análise, a responsabilidade pela formação de um governo minoritário na sequência das eleições legislativas de 2009, cabia ao senhor Presidente da República. Com a sua lucidez e pragmatismo habituais, Marcelo Rebelo de Sousa confirmou o que entretanto se vinha demonstrando como certo e definitivamente provado: que "o pedido de resgate" a que o Governo de José Sócrates se viu obrigado em consequência do "chumbo" do precocemente defunto PEC IV, só poderia ter sido evitado por um Governo com o apoio maioritário dos deputados da Assembleia da República. Sabemos agora, oficiosamente, que foi assim: José Sócrates tentou, por três vezes, um acordo com o PSD, antes e depois de Pedro Passos Coelho se tornar presidente do partido, nas eleições internas de 26 de março de 2010. Nas amenas cavaqueiras da "Quadratura do círculo", na "SIC Notícias", já António Lobo Xavier tinha admitido há alguns meses que a exigência da votação e a consumação do chumbo do PEC IV - negociadas e acordadas entre PSD, CDS, PCP e BE - tinham um único objetivo: obrigar ao "pedido de resgate" e provocar a antecipação das eleições legislativas em consequência da previsível demissão do Governo. O pânico generalizado que a ideia de um "segundo resgate" hoje suscita, demonstra bem a leviandade e o cinismo da estratégia que conduziu o país à situação trágica em que se encontra.
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A reação emotiva de Paulo Rangel e os dislates de Eduardo Catroga a propósito destas serôdias revelações, apenas confirmaram os factos referidos pelo autor do livro que, aliás, nenhum deles se atreveu a negar. Certamente, nada disto absolve José Sócrates da responsabilidade política por ter aceitado formar um Governo minoritário em 2009, conhecendo ele melhor que ninguém a situação do país. Mas já prestou contas disso, dando a cara à derrota sofrida nas eleições antecipadas de 2011. Resta avaliar o papel do Presidente da República que teve todo o tempo e oportunidade necessária para desenhar a sua estratégia para as eleições presidenciais a que se iria apresentar como candidato favorito, e para repensar a orientação que daria a um provável segundo mandato. O discurso no ato de tomada de posse, em 9 de março de 2011, foi claro e inequívoco quanto aos seus propósitos, e foi muito bem entendido pelo então primeiro-ministro que, por isso mesmo, abandonou desabridamente o edifício da Assembleia da República, onde decorria o ato.
Na semana passada refletia nesta coluna sobre as graves disfuncionalidades que afetam atualmente os sistemas políticos e as democracias constitucionais, ilustradas por acontecimentos recentes em Portugal, Estados Unidos da América, Hungria ou Egito, com uma incidência perversa no estatuto e nas funções tradicionalmente assinalados às constituições dos estados e aos seus instrumentos de controlo. A justificação histórica do semipresidencialismo português adotado pela Constituição de 1976 fundou-se na ideia de que a falência precoce e a instabilidade política permanente da Primeira República (1910- 1926) se teria ficado a dever ao sistema parlamentarista consagrado na Constituição de 1911. Por isso, os deputados constituintes em 1976 preferiram instituir um Presidente que pudesse servir como "válvula de segurança" do sistema, que fosse capaz de prevenir crises graves e de compensar o sectarismo partidário. Demonstra-se agora que o semipresidencialismo não só esgotou já a sua missão como, pelo contrário, se transformou num fator de desresponsabilização dos partidos e menorização da democracia. Por isso já defendia, em fevereiro de 2010, a urgência de o Governo submeter um voto de confiança à Assembleia da República, antes que a aproximação das eleições presidenciais inviabilizasse a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições legislativas antecipadas. Está aqui uma chave fundamental para a explicação do descrédito crescente dos partidos políticos que o desvario desta governação não para de fomentar. Ou os partidos se reformam e renunciam ao monopólio que detêm no sistema político ou se enquistam, afundando com eles próprios o sistema democrático que ajudaram a criar.