Em Portugal, um obscuro documento redigido por técnicos internacionais, em língua inglesa, tardiamente traduzido para português e vulgarmente designado por "memorando de entendimento", adquiriu no discurso político e na orientação do Governo um estatuto supraconstitucional que o nosso direito interno, a ordem jurídica europeia e o direito internacional não conseguem adequadamente identificar nem certificar como tal. Ao cabo de 3 anos de um inédito "braço de ferro" com o Tribunal Constitucional, o atual Governo, com a maioria parlamentar que o apoia, preparou um orçamento que pela 4.ª vez consecutiva prevê medidas que apenas a título "excecional" foram admitidas pelo tribunal nos exercícios orçamentais anteriores. A pretexto de que o "memorando de entendimento" não lhe deixa qualquer outra alternativa para que possa conseguir já no próximo ano fechar com sucesso o dito "programa de resgate", o Governo e a maioria parlamentar transferem capciosamente para o Tribunal Constitucional a responsabilidade política e o dever de prestação de contas inerentes à legitimidade democrática que lhes foi constitucionalmente conferida pelo voto popular em 2011. Na terminologia clássica há uma palavra que qualifica este tipo de procedimentos: "subversão".
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Durante 15 dias, o Governo dos EUA "fechou", por falta de recursos, quando as forças mais extremistas do Partido Republicano bloquearam no Senado a aprovação do aumento dos limites legais de endividamento, criando uma crise financeira artificial como meio de chantagem para obrigar à revogação da lei do sistema de saúde que o presidente Obama conseguira aprovar no final do mandato anterior. Sugestivamente, o expediente parlamentar utilizado designa-se por "filibustering", palavra que em português se traduz por "pirataria", e consiste numa técnica de obstrução à tomada de decisões, prolongando propositadamente, por tempo indeterminado, as intervenções parlamentares. Trata-se de um "expediente" para a proteção das minorias, cuja constitucionalidade se apoia no engenhoso sistema de "cheks and balances" inventado há 200 anos pelos pais fundadores da Constituição americana.
Na Hungria, o resultado das eleições legislativas concedeu, conjunturalmente, uma maioria parlamentar qualificada aos partidos do Governo que a utilizaram para subverter, com a aprovação de dezenas de "revisões constitucionais" e de "leis de valor reforçado", direitos fundamentais e múltiplas garantias de independência judicial que a Constituição húngara originalmente consagrava. O Conselho da Europa e o Parlamento Europeu denunciaram estes procedimentos que as autoridades húngaras serão obrigadas a reconsiderar.
No Egito, o primeiro presidente democraticamente eleito, Moahmed Morsi, líder da "Irmandade Muçulmana" interdita pelo anterior regime, foi deposto por um golpe militar inicialmente apoiado por muitos dos mais destacados apoiantes das reformas democráticas que lançaram a "Primavera árabe", conduziram ao afastamento do antigo ditador, à aprovação da nova Constituição e, por fim, à vitória do presidente agora deposto. As reformas democráticas encetadas enfrentam um grave impasse que vai exigir reforçada tolerância e empenhamento das partes desavindas e a reabertura de um processo constituinte que reconcilie os egípcios com a democracia e o respeito pelos direitos fundamentais.
Um pouco por todo o Mundo, continuam a surgir múltiplos problemas com uma incidência perversa no estatuto e nas funções tradicionalmente assinalados às constituições dos estados e aos seus instrumentos de controlo político e judicial. Portugal, Estados Unidos da América, Hungria ou Egito são exemplos flagrantes das graves "disfuncionalidades" que se manifestam nestes contextos sociais, políticos e jurídico-culturais tão diversos. Convirá começar por analisá-los e compreendê-los na sua singularidade para depois perscrutar as eventuais causas comuns de tão clamorosos sinais de alarme...