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2011 foi o ano de todos os equívocos, com um governo minoritário que obstinadamente recusava dramatizar a gravidade da crise financeira que há muito assolava o país e os portugueses, ao mesmo tempo que ia negociando arduamente a adoção de sucessivos "planos de estabilidade" que impunham sempre novos sacrifícios invariavelmente denunciados como excessivos, em uníssono, por toda a oposição parlamentar e pelo presidente. Precisamente, o Governo caiu em consequência da condenação unânime pelos partidos da Oposição, de um programa de "austeridade" para cuja aprovação, o primeiro-ministro tinha já assegurado o apoio da União Europeia. Ao contrário da Grécia de Papandreou e da Itália de Berlusconi, o presidente português não se bastou com a demissão do Governo e decidiu, em plena crise, dissolver a Assembleia da República eleita há pouco mais de um ano e convocar novas eleições.
E foi assim que chegamos à situação paradoxal de colocar um governo de transição, com meros poderes de gestão e já em campanha eleitoral, a negociar o resgate internacional da dívida soberana portuguesa que entretanto se tornara inadiável! Terminada a "festa" eleitoral, trocamos a "austeridade" alegadamente incompetente, envergonhada e malquerida, de José Sócrates, pela "austeridade" orgulhosamente assumida, crua e redentora, de Passos Coelho. E agora, "sem pieguices", do que nos havemos de queixar?
Na Europa, 2011 foi o ano da punição dos deplorados "preguiçosos do Sul", povos inferiores que se afirmava serem incapazes de se governar, levianos, irresponsáveis e parasitas. A sua indigência merecia castigo e um remédio draconiano - as políticas de "austeridade". Com esta mistificação procurava-se iludir a crise da própria moeda única, a inoperância do Banco Central e a estagnação da economia europeia, até que a proliferação das políticas de austeridade pelo Reino Unido, Itália ou França vieram demonstrar a natureza sistémica da crise, revelando uma Europa manietada por Berlim, obcecada pela disciplina orçamental, sem ideias nem políticas para estimular a criação de riqueza, mobilizar os jovens e combater o desemprego, como bem retratou a última cimeira de Bruxelas. Uma Europa que já não arrisca apenas a estabilidade do euro mas que vê também ameaçado o papel que ainda desempenha no Mundo e até a sobrevivência da União. A "austeridade" deixou de ser o anátema de crónicos incumpridores periféricos para se transformar num difuso pesadelo comum, fechando os povos europeus num círculo vicioso de empobrecimento e decadência.
Ao contrário do que é frequentemente insinuado, não foram os cidadãos comuns, vivendo "acima das suas possibilidades" e cultivando "hábitos de esbanjamento", os culpados pelo atual descalabro das finanças portuguesas. Mas temos consciência de que a "austeridade" é o resultado inevitável de erros sérios e persistentes que implicam a nossa responsabilidade coletiva na exata medida em que fomos nós quem elegeu livremente os representantes locais e nacionais que, nos governos e na oposição, pela abstenção ou pelo voto favorável, multiplicaram os encargos que conduziram as finanças públicas à desgraça presente. A "austeridade" poderia ter sido encarada, portanto, como uma oportunidade de regeneração, uma ocasião para eliminar desperdícios, combater vícios, corrigir distorções e, nesse sentido, até seria fácil transformá-la numa causa mobilizadora da participação cívica. Provavelmente, muitos cidadãos interpretaram a intensa dramatização do discurso político que saiu vitorioso das últimas eleições legislativas como uma promessa de mudança e de audácia reformista que todavia não se confirmou. Pelo contrário, as intervenções em curso na administração territorial, incluindo a reforma do poder local ou o novo mapa judiciário, foram traçadas a régua e esquadro, segundo o Guia Michelin, e dispensaram o envolvimento das populações por se entender que só iriam atrapalhar a geometria de um exercício dominado por preocupações de mera racionalidade económica. "Austeridade", sim: "custe o que custar"!
(Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico)