A intriga, a calúnia, a cobiça, a prepotência, a crueldade, não foram inventadas pela política nem foram sempre reconhecidas no passado como atributos relevantes para a qualificar. Pelo contrário, eram tópicos estranhos a uma conceção arcaica do poder, marcada por representações de triunfo e de glória, segundo uma perceção do sucesso limitada aos "feitos cometidos" no interior de comunidades tradicionalistas e fechadas. Por aí se explica o equívoco que ditou a má reputação do autor de "O Príncipe" - o florentino Nicolau Maquiavel - que, aliás, injustamente, o perseguiria até hoje. Já na Idade das Luzes, 200 anos mais tarde, as fraquezas morais serão confundidas com a própria natureza do "antigo regime" e descritas como uma parte do seu caráter despótico. Mas conhecida a raiz antropológica dos vícios e das virtudes, cuidou-se, para o futuro, de esconjurar os primeiros pela invocação do "império da lei" e pela engenharia de um complexo sistema de "checks and balances" - o princípio da separação dos poderes - onde se incluiu a garantia da independência dos tribunais. A democracia e o Estado de Direito iriam ditar novos enlaces entre a ética e a política e, naturalmente, abrir as portas a novos problemas. Está neste caso a tentativa corrente de desmantelamento brutal das aquisições civilizacionais das instituições públicas modernas, em nome dos interesses dos credores das chamadas dívidas soberanas. E aqui se inscreve um conceito moral com potencialidades devastadoras: a austeridade.
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A palavra "austeridade" é um eufemismo que designa as políticas impostas aos países da união monetária que se endividaram nos últimos anos, como única forma de "honrarem os seus compromissos", merecerem a "reabilitação do seu nome" perante a comunidade internacional e reconquistarem, enfim, a "confiança" dos mercados financeiros. Com tão poderosas metáforas, as opções de política financeira ficaram inscritas na esfera moral das relações pessoais, excluiu-se o debate e a necessidade de contraditório, qualquer dúvida ou objeção tornou-se repreensível como "vício de caráter" e, desta forma, todo o esforço para realizar uma finalidade suprema, entretanto convertida em princípio ético, tornou-se legítimo e justificado, qualquer que seja o sofrimento que provoque e o grau de violência que requeira.
A austeridade, nesta restritiva aceção contemporânea, envolve ainda o paradoxo de que as privações exigidas no presente são também promessa de prosperidade futura e de que os vícios tão deplorados nas instituições públicas são virtuosas "vantagens competitivas" nos empreendimentos privados. E opera-se ainda um divórcio irremediável entre o "público" que decide as políticas e o "público" que delas é destinatário além de rasgar uma cisão esquizofrénica entre os "cargos públicos" em si e as pessoas reais que deles são titulares...
A autoridade pública é um bem precioso. A consagração do "dever de boa administração" no novo "Código de Procedimento Administrativo" poderá vir a facilitar futuramente a punição dos responsáveis por lesões ruinosas do erário público tais como aquelas que foram cometidas na negociação das "parcerias público-privadas" ou nos chamados contratos "swap". Mas é uma ilusão pensar que estes problemas se resolvem através da mera iniciativa legislativa. A transformação das PPP num jogo de arremesso entre a maioria e a minoria é um péssimo sinal, embora em certa medida seja inevitável. Mas não pode servir de pretexto para o principal partido da Oposição se refugiar na denúncia da demagogia. Para construir uma alternativa política deve admitir as responsabilidades próprias e explicar como evitará repetir os mesmos erros no futuro. A condução do inquérito ao escândalo dos contratos "swap" por um membro do Governo que neles também esteve implicado não promete conclusões independentes e muito menos assegura que os abusos não se repitam no futuro. São inúmeros os sinais de degradação que por inúmeras formas vão aflorando. Público e privado, ética e política são distinções que é urgente rever e aprofundar.