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Esta crónica tem uma avença, o planeta Saturno e uma truta extinta. O único sítio confuso onde coabitam é na minha cabeça, em todo o caso o sítio que me vejo obrigado a estimar.
Há dias em que o espaço público nos leva a encher o cérebro de rastejâncias, palavra que acabo de inventar para o que vivemos: os problemas perfeitamente resolúveis do primeiro-ministro a tornarem-se problemas perfeitamente irresolúveis para nós. Vamos a eleições para resolver os problemas de um só homem. Mas estes lá continuarão bem avençados a Montenegro e, pelo meio, as eleições tornam-se também um problema, com acusações de jogos de bastidores e outros que tais, sobretudo falta de propostas políticas para o país. Dito por outras palavras, é triste que a democracia pareça triste.
Nestes dias, preciso de pensar noutras coisas porque sou realmente obrigado a estimar o meu cérebro. É um instrumento útil que prefiro não contaminar demasiado com rastejâncias. Dou por mim a pensar em coisas que elevam.
Lembro-me de uma visita nocturna ao Observatório do Lago Alqueva. Depois de esperar que dezenas de pessoas se desenvencilhassem com apenas três telescópios, vi a pérola de Saturno. Tremia nos meus olhos como no fim de uma miragem. Mas impressionou-me mais a espera das crianças. Enquanto a sua vez não chegava, davam as mãos aos pais e olhavam para o céu, igual ao de outras noites, como se alcançassem uma distância extraordinária. Viam à distância extraordinária da imaginação.
Como não posso ir todos os dias ao Alqueva, muitas vezes fico-me pelo YouTube. O canal AtlasPro, criado por Caelan Kelley, serve para erguer a cabeça. Os vídeos sobre biologia, ecologia, geologia e geografia são manifestações de curiosidade, optimismo e interesse pelas maravilhas do Mundo. Suponho que Caelan Kelley seja formado em geografia, mas também é um autodidacta extraordinário.
De onde vêm os condimentos? E a fruta? A que se deverá o nanismo nas ilhas? E haverá biomas tipicamente insulares no meio dos continentes? Caelan leva-nos a descobrir, fascinados pelos temas e raciocínios.
No último vídeo, dedicou-se a explicar a extinção de uma espécie de truta que habitava em apenas dois pequenos lagos nos EUA. Mas, desta vez, decidiu fazer trabalho de campo: equipado com uma GoPro, uma cana de pesca e muito estudo, passou dias a calcorrear as margens e a mergulhar nas zonas mais fundas.
A certa altura, descobriu uma truta morta. Fez tanta festa perante aquele peixe esbranquiçado, a boiar com a barriga para cima, parecia ter descoberto um tesouro. Nem sequer pertencia à espécie que Caelen procurava – afinal completamente extinta –, mas valia muito mais do que o triste apagamento em que por vezes nos deixamos cair.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)