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Idosos vulneráveis, sós, isolados, página 9, JN de ontem: Antónia, 69 anos, marido com 80, lavradora, vive acompanhada de um cão, uma troika, duas gatas, um Coelho, nove galinhas e uma dívida ao Banco (Central Europeu). "Se fosse hoje não tinha comprado casa aqui", declarou. "Aqui", Barbeita, Viseu. Aqui, Portugal, escuto. Fórum TSF: "Concorda com a renegociação da dívida para não ficarmos amarrados à austeridade ou, pelo contrário, concorda com os que alertam para os perigos de uma renegociação antecipada?". As opções na vida. Na praia, perante o vendedor de gelados, um dilema existencial: fruta ou chocolate? Frize Limão ou Super Maxi? Como é possível deixarem crianças à mercê desta violência inapagável da memória... Estuda-se filosofia na escola para resolver este mesmo dilema ao longo da vida em mil variações. Baixa de juros com sabor a fruta ou eurobonds de chocolate? E a gente sonha... E não decide. Mas está decidido por si: "Está calado miúdo, não há dinheiro para lambarices", diz o pai alemão, o tio holandês, o arrogante finlandês. Diz Pedro Passitos, o nosso toreador.
Vida real: Francisco e Adelaide compraram casa e vivem acompanhados por marido/mulher/filhos/sogra/despesas/impostos, um gato, o mesmo Coelho, galinhas no congelador com proteínas baratas, uma dívida ao banco central da esquina, várias troikas ao longo da vida e uma tevê onde não nada lhes parece boa notícia. Mas eis que do meio do nevoeiro digital sai uma luz ao fundo do túnel: o presidente que exclama: afinal o optimismo acabou. Que alívio! Nada pior do que viver sob a égide de uma mentira.
Até 2035 estaremos sob vigilância, disse Cavaco, e mais não disse do que Cadilhe já disse há bastantes anos atrás. Ah!, sim, palavra de presidente. Toda a gente se deitou mais em paz com o Mundo, sob vigilância. Estava calor ao fim da tarde de segunda-feira, dia 10 de março de 2014, houve Sol e a vida renasce nas árvores indiferente ao silêncio das ruas. Já não nos lembrávamos da primavera. E corríamos o risco de sair da tourada à irlandesa - ou seja, numa grande bebedeira política, a cantar fados corridos na campanha eleitoral das europeias, a batermos recordes Guinness de otimismo.
Sob vigilância. Que sorte! 33 963 idosos vivem sós e isolados no interior de Portugal 40 anos após o 25 de Abril. Talvez tudo o que pedissem fosse uma vigilância para não serem vítimas de ladrões de juros soberanos, ladrões de multas da GNR, ladrões fiscais, cartas do correio armadilhadas com prazos para pagar as scut, trafulhices dos operadores de telemóveis por causa da conta de Internet usada involuntariamente em 3-G. É então que regressa a vontade de ter contas em G-3 - daquelas que na tropa disparavam a torto e a direito, mais a torto que a direito. E disparar: trasshhh, e lá vai 2035 pelo ar, ou o 3G da Zon, Meo ou Vodafone a preços assassinos. Legítima defesa, claro.
Um grupo de forcados amadores, mais conhecido pelo grupo dos 70, surge entretanto no Campo Pequeno de Portugal capazes de enfrentar os "Bull" (touros bolsistas) internacionais, mais concretamente as pessoas normais/especuladores que compram lambarices em fundos de investimento arriscados - como dívida de países em aflição a quem não se pode deixar de sugar todo sangue até ao último dia (o último que enterre o cadáver). Menos juros! Mais tempo!, exclama o Grupo de Forcados da Macroeconomia que enfrenta o toiro da ganadaria Merkel. Mas tudo é errado. Mais três bandarilhas de Pedro Passitos, não no toiro mas nos forcados.
Eis então de novo Antónia, 69 anos, lavradora-reformada em Barbeita de Viseu, isolada do Mundo. Não teve acesso aos fundos comunitários que tornem a rua da ida à missa num calvário mais suave - embora a ida à Igreja seja para recordar o calvário. "Eu não gosto de andar por aí a falar da vida dos outros mas se vivesse no povo era mais fácil ir à missa e aos funerais". As trevas da alma são piores que uma doença. Instala-se aquela serenidade portuguesa de quem pode passar a vida a pagar dívidas e comer uma sopa. Haverá sempre uma boa missa e um funeral por perto para alegrar os nossos dias. Até 2035 ou mais. Honestamente: jamais.