Corpo do artigo
Olivia tem tanto de invulgar como de enigmática. O rosto é simétrico e luminoso, repleto de sardas; o olhar é de um azul intenso, profundo, quase misterioso; as sobrancelhas estão sempre impecavelmente desenhadas; os lábios carnudos e voluptuosos, semiabertos, abrem-se num sorriso amplo e alinhado; o nariz perfeito não incomoda; o cabelo ruivo, cortado pelos ombros, estrategicamente rebelde, dá-lhe um ar descontraído e aventureiro. No corpo magro de pele branca, também ela carregada de sardas ruivas, qualquer peça da última tendência encaixa à medida. É amante de banhos de sol na praia e da quietude da montanha, lê Miguel Torga e Luís Sepúlveda, gosta de animais e de arte, de marisco e de vinho branco. No Instagram, onde soma mais de 13 mil seguidores, partilha fotografias de paisagens idílicas - não fosse ela uma influencer de viagens - e da sua beleza incomum.
A descrição é demasiado pormenorizada, quase exagerada, mas tem um fundamento. É que Olivia tem tanto de esbelta como de falsa. Olivia não existe. É uma mulher fabricada que vive num mundo fantasioso. E é também a portuguesa que ficou em terceiro lugar no concurso Miss Inteligência Artificial, organizado pelo World AI Creator Awards, conquistado pela belíssima Kenza Layli, uma influencer marroquina com mais de 240 mil seguidores nas redes sociais. A personagem criada por Myriam Bessa, fundadora da agência Phoenix AI, até fez um discurso em vídeo a agradecer a distinção e foi citada pela imprensa de todo o Mundo.
Por mais que reconheça as vantagens que a inteligência artificial possa ter nas mais variadas áreas, não posso deixar de considerar perverso um concurso de beleza (que só por si já tem muito que se lhe diga) que distingue mulheres que não existem. É certo que, no fundo, a Olivia não deixa de ser um projeto criativo (do estúdio Falamusa, das Caldas da Rainha), mas a linha entre a arte e a realidade é demasiado frágil e perigosa. É uma mulher com identidade e redes sociais, que partilha vídeos, a viver uma vida que não existe e que interage com seguidores reais. Com pessoas reais. Num Mundo em que é já demasiado difícil distinguir o verdadeiro do falso, o real do ficcional, onde crianças partilham rotinas diárias de cuidados de pele e adolescentes procuram procedimentos estéticos cada vez mais cedo, com a Amnistia Internacional a classificar o TikTok como “um espaço cada vez mais tóxico e viciante” que incentiva pensamentos depressivos graves nos jovens, este tipo de concurso torna tudo mais estranho e perpetua o ideal de uma beleza perfeita que só existe mesmo com inteligência artificial.