O bispo do Porto, provavelmente um dos mais lúcidos observadores e pensadores da realidade nacional, resumiu ontem, numa entrevista concedida ao diário "Público", apenas numa frase, um dos mais sérios - e aparentemente inultrapassável - problemas do país. Disse D. Manuel Clemente: "As pessoas desistem [de ideais colectivos] porque o dia-a-dia as sobreocupa excessivamente e não vêem mais nada, acham que as decisões gerais são para os outros. Mas também desistem porque aqueles que deveriam pedagogicamente propor ideias e linhas de rumo estão também no puro imediatismo".
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As causas e consequências do deslaçamento do espaço público estão há muito estudadas. Resumidamente, a ideia de que o amanhã não conta, de que, para citar o sociólogo francês Michel Maffesoli, o que interessa é transformar o quotidiano numa espécie de "instante eterno", gozando o que o presente oferece a um preço que, por muito elevado que seja, estamos dispostos a pagar, essa ideia corrói a argamassa necessária à construção de uma sociedade atenta, interventiva e democraticamente punitiva. Não há ideal colectivo que resista a esta bomba-relógio que paulatinamente fomos construindo.
Este "imediatismo" da vida real, voltando a D. Manuel Clemente, tem correspondência na vida política, na exacta medida em que a definição de agendas para um melhor futuro reclama sacrifícios com custos politicamente elevados (e insuportáveis, para quem sabe que o "instante eterno" rende mais votos e traz menos incómodos).
Exemplo de ontem. O primeiro-ministro sugeriu que os professores excedentários possam utilizar o espaço da lusofonia de modo a encontrar aí o emprego que Portugal hoje não lhes consegue dar. Caiu o Carmo e a Trindade. No tom trauliteiro a que nos habituou há muito, Mário Nogueira, líder da Fenprof, disse que quem devia emigrar era o primeiro-ministro. A seguir, Luís Filipe Menezes saiu em defesa de Passos Coelho e acusou os sindicalistas de terem uma postura que "quase daria para fazer deles uma espécie de atracção turística" (sic). E António José Seguro, esquecendo-se de que, há não muito tempo, o porta-voz do PS sugeriu aos jovens que emigrassem, considerou que o primeiro-ministro é um homem "resignado".
Ora aí está o efeito do "puro imediatismo" de que fala o bispo do Porto. Passos Coelho falou (com pouco jeito, é verdade) de um dos maiores flagelos do nosso país: o galopante desemprego. O troco chegou não sob a forma de estruturadas respostas e propostas, mas sob a forma do "sound-byte" que garante uns segundos de presença nas televisão.
Na mesma entrevista, D. Manuel Clemente faz um apelo: "A margem de manobra é estreita, mas é exactamente por isso que devemos concentrar-nos em salvar o essencial". Hoje, o bispo do Porto, ao ler os jornais, há-de perceber que não tem os decisores do seu lado. É pena, mas é o que temos.