Corpo do artigo
Jorge Mário Bergoglio, também conhecido por Papa Francisco, entrou-nos casa dentro pela primeira vez no início do ano. E por lá aparece amiúde, trazido pelas notícias, como uma estrela luminosa em movimento sobre os telhados da nossa negra noite de depressão coletiva. Ninguém esperava uma figura no Vaticano com uma tão radical sublevação formal. Uma figura de "grande público" ao nível de um Obama ou de um Dalai Lama, mas com um "conteúdo" coerente e uma espontaneidade nunca vista por aqueles lados. Um homem com uma vida de trabalho, despojamento e dedicação aos outros que o faz amar sem táticas, varrer o Banco do Vaticano sem hesitações ou finalmente pedir uma desculpa dolorosa pela pedofilia e por tantos outros maus serviços no meio de muitos igualmente bons. Entretanto, o Vaticano deixou de ser um "castelo de marfim". Roma voltou ao mapa do Mundo.
O que se torna irresistível em Jorge Mário é aquela afetividade sincera que permite até a um ateu aceitá-lo. Porque ele toca nas pessoas através das palavras. E mesmo fisicamente, perante as multidões, percebe-se que estende a mão para tocar e não para ser tocado, como se quisesse chegar a todos, incessantemente. Começam a sobrar os exemplos, aliás, dos momentos inesperados em que lhe pedem um abraço, um beijo numa criança, e ele vai sempre - estejam limpos ou sujos, seja perigoso ou não. É simbólico aquele episódio, há meses, em que alguém caiu num palco perto de si e Mário acorreu de imediato para ajudar - ele não se vê como um "chefe de Estado" que espera por um assessor para compor a situação. Vai ele mesmo, sem protocolo que o trave.
Francisco não está a milhões de quilómetros da vida comum e parece, aliás, de outra galáxia, face à Igreja Católica de discurso vazio e monocórdico que conhecemos. Pelo contrário: hoje, temos o Mário Jorge, de Buenos Aires, temporariamente em Roma, temporariamente no lugar máximo da Igreja, e que faz deste privilégio um dom, um poder para chegar aos outros. Daí que responda a cartas, telefone a pessoas, apareça pela calada da noite a matar a fome aos que dormem nas ruas e, sobretudo, que tenha decidido alojar-se numa casa simples de missionários onde os outros estão perto dele - para não se enredar na tenebrosa solidão dos palácios adornados de luxo por fora e de solidão por dentro.
Francisco não vai conseguir resolver todos os grandes problemas da Igreja. Provavelmente, alguns já não estão ao alcance dos anos que lhe restam. Está a conseguir evitar a exclusão dos divorciados e dos homossexuais, talvez dê passos na possibilidade de o celibato não ser condição para acesso ao sacerdócio, mas, infelizmente, não vai conseguir chegar ao ponto alto desta pirâmide dogmática, transversal a quase todas as religiões dominantes, que é a não ordenação das mulheres. Ainda não vai ser este Papa a ficar na história como o "Mandela" da Igreja em relação à segregação sexista.
Ainda assim, Bergoglio é um "tempo novo". À revista jesuíta "Brotéria", há uns meses, deu uma resposta inesquecível sobre quem são as pessoas que levam às costas o peso do mundo, aqueles que ele classifica como "os novos santos". A resposta: "Vejo a santidade no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes idosos com tantas feridas mas com um sorriso por terem servido o Senhor, as irmãs que trabalham tanto e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum. Associo frequentemente a santidade à paciência: não só a santidade como 'hypomoné', o encarregar-se dos acontecimentos e circunstâncias da vida, mas também como constância no seguir em frente dia após dia. (...) Esta é também a santidade dos meus pais: do meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que me fez tanto bem".
Esta é a melhor definição do que é hoje um trabalhador (ou desempregado), de um pai ou de uma mãe que não desiste de lutar nem de viver. Estas pessoas, mais do que julgadas pelas questões morais de qualquer igreja ou qualquer deus, ganham o Céu assim: pelo pão e pela camisa lavada. O Evangelho é isto.