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Todas as barcas são bíblicas, mas umas são mais bíblicas do que outras. Eu já atravessei ribeiras em barcas sem evocar “no início era o Verbo”, nem pensar em Job e outros angustiados; mas qualquer barca grande o suficiente para esconder um povo é construída a versículos.
O Reino Unido comprou uma nave dos loucos. Foi construída em 1976, vogou de país em país, mais ou menos com propósitos semelhantes (uma vez para acolher pessoas sem-abrigo, outra vez para universitários), e agora, em posse britânica, está ancorada no porto de Portland. Chama-se Bibby Stockholm: é um prédio que flutua, uma prisão que bóia, uma história amarrada ao cais.
A ideia desta barca, se é que tinha alguma ideia, foi gastar menos dinheiro com a acomodação de migrantes que buscam asilo. “A utilização da barca diminuirá a dependência de hotéis dispendiosos, garantindo um sistema de asilo mais ordeiro e financeiramente eficiente”, disse o Governo, numa economia de justificação ela própria ordeira, eficiente - e bastante sinistra.
Centenas de migrantes começaram a ser enclausurados nessa arca quase de Noé, em que há decerto lugar para cada espécie das angústias humanas. Quem aí passou a viver explica melhor do que eu: “A experiência deixa a sua marca. Estamos mentalmente atormentados. Alguns de nós são casados, e todos estamos apartados das famílias e preocupados com elas. Vivemos em tensão constante, muitos de nós medicados, outros com problemas de saúde graves, e parece-nos que a situação tende a piorar” (carta enviada ao “The Guardian” desta semana).
Neste caso, um fogo combateu o outro. Cinco dias depois de chegarem os primeiros migrantes, o risco de incêndio, uma tentativa de suicídio, e as más condições de habitação juntaram-se a um surto de legionela.
Faltava de facto uma epidemia para se perceber que aquela gente suplicante, aquele povo desamparado, era uma nova ocorrência bíblica, párias condenados a um ostracismo flutuante.
Mas quem decide talvez nada tenha lido, nada saiba, e lhe escape a problemática de pôr gente em barcas. Afinal, tirar dali os migrantes foi iluminação breve e meramente sanitária. Limpada a legionela, os migrantes receberam esta semana um ofício.
Eficaz e curto e algo sardónico, como todas as burocracias que abocanham as vidas: além de requerer o regresso dos migrantes, indica que as pessoas podem ter de partilhar o quarto, e que a barca Bibby Stockholm tem ajuda médica, espaços recreativos, actividades sectoriais voluntárias, aulas de inglês e áreas de entretenimento.