Esta será recordada como uma das mais negras semanas do Portugal pós-25 de Abril. Enquanto os portugueses procuravam ainda assimilar o terramoto dos vistos dourados, que incluiu a inédita prisão do líder de uma polícia e a demissão de um ministro, eis que é também detido um ex-primeiro-ministro, outra estreia na espiral de escândalos que tomou posse da política e da finança nacionais. De permeio, PSD e PS tentaram na Assembleia da República acabar com a suspensão das subvenções vitalícias aos políticos. Mas o desiderato foi bloqueado, justamente pelo Bloco de Esquerda, o partido que procura neste final de semana uma liderança e um rumo.
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O episódio das subvenção é o espelho fiel daquilo em que se tornou a prática político-partidária por parte de muitos dos representantes do povo que tomam assento no Parlamento. Começando pela essência, está em causa uma vergonhosa mordomia criada em 1985 que consagrava o direito a um subsídio vitalício aos deputados com 8 anos de serviço. Mais tarde esse período foi estendido para 12 anos e em 2005 o Governo socialista de José Sócrates acabou com a benesse. No Orçamento do ano passado, o Governo de Passos Coelho introduziu a chamada "condição de recurso", que na prática suspendeu o pagamento da subvenção em alguns casos.
Ora, passado apenas um ano, PSD e PS tomaram a inacreditável decisão de fazer aprovar o fim da suspensão. Depois de tantas chamadas à cooperação entre os dois partidos do arco governativo, da parte do primeiro-ministro e do presidente da República, todos eles ignorados, eis que finalmente estes partidos se entendem, nada mais nada menos do que para tratar da vida dos colegas da classe política. Três anos a subtrair brutalmente aos rendimentos dos portugueses, cortando nos salários, pensões e prestações sociais, não foram obstáculo moral para que os sociais-democratas encontrassem descaramento para aplicar peso e medida diferentes à classe política.
Este é um daqueles casos em que se percebe a importância do papel dos pequenos partidos. Há os que parasitam no sistema e, quando lhes convém, fazem vista grossa, como foi o caso flagrante do CDS, e há os que não transigem e denunciam o abuso do poder, como foi o caso do Bloco de Esquerda. E foi justamente este último que exigiu que a dita suspensão do pagamento das subvenções aos políticos fosse votada em plenário. Caiu o Carmo e a Trindade. Desde logo, o desconforto de muitos dos deputados socialistas e sociais-democratas indiciava uma certa revolta face a esta proposta que, diga-se o que se disser, terá tido o beneplácito de Passos Coelho e António Costa. A solução encontrada de retirar a proposta é bem a imagem da mediocridade ética de alguns dos protagonistas. De um dia para o outro, a proposta passou a carecer de bom senso e de sentido de oportunidade, num recuo tático que não limpa a vergonha que quase se materializou.
Em fim de semana em que o Bloco se reúne em convenção, este pequeno grande episódio é como que o reencontrar de uma vocação. A pulverização da Esquerda ameaça fortemente a sobrevivência de um partido que não foi capaz de consolidar a "promessa" com que ganhou um espaço próprio na década de 2000. Augusto Santos Silva, na sua última crónica semanal no JN, sintetiza bem o projeto de ação do Bloco para o alargamento da sua base de influência: a metamorfose da matriz marxista numa entidade política moderna, o europeísmo progressista e o relacionamento ambivalente com a base de apoio do PS, onde por um lado contestava a submissão à ortodoxia de Bruxelas e, por outro, partilhava temas mais transversais como a igualdade de género ou a limitação de mandatos. Esgotada esta linha estratégica sem o esperado crescimento, a atual crise do Bloco é, mais do que uma luta pela liderança, uma questão de vocação.
Entre a consistência e a solidez da base de apoio do Partido Comunista e o risco da emergência de epifenómenos populistas, como o que protagoniza Marinho e Pinto, o Bloco só sobrevive se redefinir a sua vocação. Aquilo que aconteceu esta semana no Parlamento pode ser a chave. A dimensão ética da política tem, ainda e sempre, espaço de afirmação.