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O estado de graça de Passos Coelho está-se a esgotar. É verdade que as sondagens ainda mostram uma grande base de apoio. Com o PS entalado entre o acordo com a troika e as reformas que não pode propor por não ter sido capaz de as fazer quando era governo, a oposição fica limitada ao PC e BE. A greve geral e a as últimas manifestações evidenciam que, para já, a contestação organizada se cinge à base costumeira da função e empresas públicas. Na ausência de uma alternativa, os cidadãos esforçam-se por acreditar que os que estão no poder farão alguma coisa. Acreditam cada vez menos, não apenas pelo que vão vendo e lendo, mas também pelo que vão sentindo quando o vento da mudança lhes bate à porta. "Ainda se a gente percebesse que era para o bem dos nossos filhos ou netos", desabafam desalentados. A esta ânsia de esperança não se responde com discursos redondos e vagos, mesmo quando se afirma, com ar compungido, conhecer bem os problemas por que as pessoas passam. O vício dos discursos políticos é que têm como destinatários os outros políticos, a comunicação social e um público urbano, mais ou menos esclarecido. A maioria dos cidadãos não faz ideia do que são reformas estruturais, nem percebe a importância da concorrência e, então, isso da regulação é mesmo um mistério. Posta nestes termos, a política é uma casa dos segredos e, assim como assim, as pessoas preferem a versão televisiva original, por sinal bem mais perceptível do que o jogo politiqueiro que tem lugar na Casa da Democracia.
No seu discurso de Natal, o primeiro-ministro ainda tentou concretizar, citando a necessidade de mudanças na justiça - o que toda a gente percebe - e a pretensão de tornar a máquina administrativa e as decisões públicas mais transparentes - o que, sendo importante, é a menor das preocupações para quem, todos os dias, ouve falar de mais cortes na função pública. Ao mesmo tempo, ignorou, não se sabe se por conveniência ou convicção, as famosas reformas laborais, validando a tese que faz do seu ministro da economia um kamikaze em processo de imolação. Chega? Não. É muito pouco quando se confronta esse discurso com os problemas que se sentem no dia-a-dia, das empresas sem crédito e a encerrar, do desemprego a aumentar e perpetuar-se, da exclusão e da miséria, das reformas a minguar e das prestações por pagar, do sentimento de que a justiça apenas funciona para, e contra, os pobres. Num quadro destes, dizer que as reformas devem começar de baixo, para permitir que o potencial de cada um encontre concretização, é de uma candura a roçar o cinismo de mau gosto.
Um governo de tecnocratas urbanos, mais ou menos liberais e elitistas, terá sempre problemas de comunicação. Este começa a exagerar. Há Passos Coelho a mais e Portas a menos. Não está em causa nem a intenção, nem a competência. Falta política que alcance a pólis. Pedir confiança sem se comprometer, torna a esperança num mero slogan abstracto, sem qualquer conteúdo.
O próximo ano, já todos percebemos, vai ser duro. É nessas alturas que o pior ou o melhor da natureza humana pode vir ao de cima. O egoísmo ou a solidariedade, a humilhação ou o respeito pelo próximo. Quem tem responsabilidades governativas pode ajudar a inclinar a balança para o lado certo. A reforma da justiça é uma prioridade, para promover a equidade e acabar com a ideia de impunidade. Na saúde, o rumo está certo mas os cortes adicionais anunciados serão difíceis de concretizar sem rupturas ou compensações no próprio (quantas operações "custam" os segundos ou terceiros abortos ou "pílulas do dia seguinte"?) ou noutros sectores. A reforma na educação parece ponderada. Na economia olha-se para o longo prazo mas, até lá, estamos todos mortos. Na Defesa estão os intocáveis? Se formos capazes de discutir estes problemas com serenidade, orientados pelo respeito pela dignidade humana e pela solidariedade, colocando as questões com clareza, 2012 não deixará de ser um ano difícil mas pode vir a ser recordado pelas boas razões. Ser um Bom Ano!
