Quando o Exército Islâmico do Iraque e do Levante, surgido do quase nada, começou a conquistar terreno na Síria, ninguém ou poucos ligaram. Podia ser um grupo armado como tantos outros e, de qualquer forma, o mal que fizesse perdoado estava, porque combatia o líder sírio Bashar al-Assad, um dos nossos "diabos" de estimação. Como Assad representou, a dado passo, a nossa obsessão do momento, todos aqueles que o combatessem ou eram qualificados como "oposição democrática" ou, se o "democrático" fosse qualificativo quase insultuoso, como "rebeldes".
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Estes rebeldes, afinal, eram apenas mais uns, acrescendo à Al-Qaeda e a algumas das suas derivações, como a também sanguinária Frente Al-Nusra.
Depois, o EIIL saltou para o Iraque, e começou a conquistar terreno perante um exército iraquiano manifestamente mal preparado e sem grande vontade de combater. Sem grande vontade de combater e, sobretudo, sabendo o que aconteceria a cada um dos que fossem presos. Na melhor das hipóteses, abatido com uma bala. Na pior...é melhor nem falar.
Também aí, a maioria achou que era uma luta entre "eles".
Pelo caminho, o EIIL proclamou-se Estado: o Califado. Pelo caminho, foram chegando notícias cada vez mais terríveis sobre os "soldados" do Califado, psicopatas sem limites que matavam, crucificavam, torturavam ou enterravam vivo quase quem muito bem entendessem. Estiveram às portas de Bagdade.
Mas nem aí se achou que valesse a pena fazer muito.
Depois, o Califado assentou posições e começou a mostrar apetite pelo Curdistão ou, pelo menos, por algumas das suas posições estratégicas. Aí, começou a ouvir-se dizer "alto lá, também é de mais!". Acreditou-se que as forças do Califado iriam perecer ou pelo menos ser travadas às mãos peshmerga curdos, aqueles que "enfrentam a morte". Os peshmerga enfrentaram de facto a morte, mas não conseguiram travar coisa nenhuma.
Depois, o Califado virou as suas atenções para os não muçulmanos. Cristãos, em primeiro lugar. Os de Mossul foram escorraçados ou morreram. Achou-se mal, mas, enfim, estas guerras são especiais, não é? A seguir, tratou-se dos yazidis, de etnia curda, obrigados a fugir pelas montanhas, sem alimentos, sem água. Antes, muitos foram mortos. Antes, há registo de mulheres e crianças terem sido enterradas vivas. Outros foram exibidos às dezenas em vídeos divulgados pelo Califado a "converterem-se". Ao Islão, pois claro, "morriam" de vontade. Por último, estão no fio da navalha os habitantes de Amerli, na maioria turcomanos xiitas (ser turcomano chega para ser morto; ser xiita garante ser morto), cercados há dois meses sem acesso a alimentos ou água pelos tais combatentes do Califado.
De repente, os Estados Unidos acordaram; e todos espevitaram. Aqueles, começaram a bombardear posições do Califado com grande eficiência, porque já conseguiram escorraçá-los da barragem de Mossul, absolutamente crucial para quem tiver pretensões a controlar o Iraque. A Alemanha e a França, por seu turno, estão a fornecer armas aos curdos, que dispõem finalmente de capacidade de combate. Podem este apoio e aqueles bombardeamentos ser defendidos? Claro que podem, embora, pelo caráter excecional (mas indiscutível), seja de realçar a legitimação - baseada, por certo, na teoria da guerra justa - dada pelo Papa Francisco a este tipo de reação contra o terror que representa a gangrena do Califado.
Ao mesmo tempo, a hipocrisia lá está, larvar ou até escancarada. Laurent Fabius, MNE francês, não conseguiu explicar em entrevista por que razão a França considera que os bandidos do Califado só devem ser atacados no Iraque, mas não na Síria. As questões são diferentes, disse. São diferentes? Mas os combatentes do EIIL não matam, não executam, não torturam, não crucificam, não decapitam na Síria? Claro que sim, pelo menos tanto como no Iraque. Pois, a diferença é só política, mas de pequena, pequeníssima política.
É que, na Síria, o que o EIIL faz enfraquece o ditador Bashar al-Assad. Portanto, paciência para os sírios que sofrem horrores às mãos daqueles animais, porque o seu Deus os acolherá. É assim: os inimigos do meu inimigo meus amigos são, mas tão-só consoante o lugar e espaço onde matem. No Iraque, não, bombas para cima deles (e bem). Dois pesos, duas medidas, hipocrisia: assim anda o receituário das relações internacionais.