Conhecemos a origem da ideia de Portugal como país de brandos costumes, em que todos convivem de forma pacífica, tolerante e sem excessos, diferente do que se passa lá fora.
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Foi uma narrativa que serviu para nos isolar do Mundo, ao mesmo tempo que criou a ideia de um povo de exceção avesso à violência.
Nada mais falacioso! Nem no passado, nem no presente somos diferentes. Por mais que douremos a construção do império e lhe chamemos descobrimentos, houve vencedores e vencidos que têm hoje visões distintas da história e prolongam ressentimentos. Sim, existe em Portugal racismo e é verdade que a cor da pele está associada a uma estratificação social longe de ser resolvida. Há desigualdades e as oportunidades não são idênticas.
Muito se escreveu e tomou posição sobre a violência no bairro da Jamaica e os episódios de vandalismo que se seguiram. Aquele bairro no centro do Seixal, bem perto de Lisboa, é um cancro quase com três décadas que só agora começou a ser resolvido. As torres inacabadas de tijolo à vista e janelas mal fechadas, com puxadas ilegais de luz, água e gás, sem saneamento, sem arruamentos, são elas próprias uma violência que gera violência. Para a maioria dos seus habitantes, a polícia não serve para proteger, é uma ameaça e como ameaça é tratada. Não será naquele lugar que esta perceção vai mudar. Talvez nas novas casas que lhes estão a ser atribuídas e, mesmo assim, começando pelos mais novos e reforçando a autoestima.
A ira é muito fácil de incendiar e é isso que está a acontecer. O episódio do bairro da Jamaica tem servido de combustível para fogos ateados com outros fins. É um filme que já vimos e chega com atraso, mas repetindo a mesma história. Os carros queimados e a destruição gratuita geram medo e são um passo para pedirmos mais ordem e repressão. Movimentos idênticos aconteceram em França e em outros países europeus, primeiro os jovens das periferias, excluídos e sem futuro, agora as violentas manifestações dos coletes amarelos, quase em clima de guerrilha urbana, criando os ingredientes para a ascensão do autoritarismo.
O país dos brandos costumes não está imune aos extremismos antissistema que servem para exacerbar ódios e justificar violências. Aqui vão chegar os sinais dos tempos, de que são exemplo os ataques do PNR. A democracia é muito imperfeita, mas decerto o mais precioso bem que importa defender. Para que o passado não regresse.
Professora universitária
