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1. Elika Takimoto partilhou nas redes sociais um desabafo arguto e muito pertinente. Dizia ela, no Facebook, que o Brasil é o único país onde "um réu com contas na Suíça" encabeça o processo de destituição - "impeachment" - de "uma presidenta que não é acusada de nada"! De facto, a presidenta Dylma é apenas suspeita de uma alegada tentativa de obstruir o trabalho da justiça por ter nomeado Lula da Silva para o seu Governo, com "o único intuito" - alega-se - de prejudicar a averiguação de eventuais crimes de corrupção por que o antigo presidente do Brasil está a ser investigado. Embora a ideia de levar Lula para o Governo não seja de agora, a oportunidade escolhida terá sido, no mínimo, infeliz. Mas a verdade é que a imunidade ministerial de Lula não impede a continuidade da operação Lava Jato nem o livra de responder perante a justiça, tal como aconteceu, aliás, com outros membros do Governo, deputados e líderes partidários.
Revela-se, deste modo, uma relação perversa entre a iniciativa judicial contra a nomeação de Lula e a iniciativa parlamentar pela destituição de Dylma. Uma perversidade que se torna obscena, quando o juiz que desconfia das intenções da presidenta se junta aos manifestantes que, nas ruas e nas redes sociais, a insultam e exigem o derrube do seu Governo! A independência que as democracias constitucionais de todo o Mundo reconhecem ao poder judicial tem como única justificação a garantia de isenção e de imparcialidade de quem tem o poder de julgar os outros, de prender, condenar ou absolver, para assegurar que a força da lei prevaleça sobre quaisquer outros poderes ou interesses. Não há memória de que, alguma vez, um tribunal tenha derrubado qualquer ditadura ou que algum ditador tenha caído por força de uma sentença judicial. Por isso, o poder de julgar, que no passado era apenas uma das prerrogativas do "Príncipe", se transformou em competência soberana de tribunais independentes e um requisito essencial do Estado de direito.
O "ativismo judicial" cresceu no Brasil ao abrigo da nova Constituição democrática, em defesa dos direitos económicos, sociais e culturais e na proteção ambiental, previstos e garantidos pela Lei Fundamental. Nenhum Governo brasileiro se empenhou tanto na promoção destes valores como a presidência de Lula da Silva. Contudo, resistiu o arcaísmo mais difícil de erradicar, um vício que degrada o sistema político brasileiro e ameaça a generalidade das democracias contemporâneas - a corrupção. Os juízes brasileiros, que em nome da militância cívica comprometam a sua irrenunciável neutralidade política, estão a contribuir para o fracasso do combate contra a corrupção e a cavar a sepultura do próprio regime democrático a que devem a dignidade e o prestígio que alcançaram.
2. A visita do presidente dos Estados Unidos a Cuba encerrou o longo capítulo da Guerra Fria e abriu um novo ciclo de convergência entre compreensões muito diversas da democracia e dos direitos humanos. É reconhecida a exemplaridade do regime político cubano, em matéria de garantia do direito à educação, de proteção da infância, de acesso universal aos cuidados de saúde. Áreas que são muitas vezes menosprezadas por democracias todavia ciosas dos direitos de consciência, das liberdades de expressão e reunião. O maior escândalo que hoje se exibe em Cuba não é porém da responsabilidade do regime cubano. Chama-se Guantánamo, e o presidente dos Estados Unidos é o primeiro a reconhecer essa infâmia e a sua inconformada frustração.
3. Na passada terça-feira, a Assembleia da República aprovou um voto de pesar pelas vítimas dos atentados terroristas de Bruxelas, levados a cabo nessa manhã trágica. De pé, os deputados observaram um minuto de silêncio, em homenagem aos inocentes. O texto de condenação da violência e solidariedade com as vítimas, subscrito por todos os grupos parlamentares, foi aprovado por unanimidade. De facto, não é a rejeição da violência nem o apego à democracia aquilo que separa a Esquerda da Direita, o que distingue a maioria da atual minoria parlamentar. Os combates de hoje são transversais às fronteiras políticas que nos tínhamos habituado a reconhecer e que dávamos por eternas...
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL