A democracia brasileira tem quatro décadas e a sua resistência tem sido posta à prova vezes sem conta, mas só este ano, nos braços de ferro com Musk (pela regulação da rede social X) e com Trump (por causa das tarifas) e, agora, com a prisão de Bolsonaro (por tentativa de golpe de Estado), já mostrou que é mais robusta do que a maioria das democracias do Mundo (incluindo a norte-americana) e mais capaz de defender a sua soberania (do que os países da UE).
No dia em que foi preso o ex-presidente, celebrou-se na Gulbenkian em Lisboa o lançamento do livro "A palavra e o poder" organizado por Rodrigo Tavares, Flavia Lima e Naief Haddad, precisamente sobre os grandes temas, momentos e debates destes quarenta anos. É uma seleção de textos editados na "Folha de São Paulo", ao longo das décadas, postos em diálogo com textos atuais, num diálogo plural e intergeracional, que inclui os oito ex-presidentes do Brasil e diversas personalidades, jornalistas e académicos. Este lançamento acompanha a exposição "Complexo Brasil", patente no museu e que é um retrato contemporâneo das contradições e complexidades desse país continental, em que o bom é incrível e o mau pode ser péssimo, e que consegue, numa só geração, parir Caetano, Gil, Chico, Gal e Bethânia, mas também Jair Bolsonaro.
Ora eu, que sou uma militante da lusofonia e faço questão de consumir cinema, literatura, música, podcasts e séries preferencialmente em língua portuguesa, contrariando a dominação cultural anglo-saxónica do mundo ocidental, devo muito ao manancial cultural que o Brasil produz, como o maior país de expressão portuguesa. Que sorte poder partilhar a língua com aqueles duzentos milhões de pessoas, tendo acesso a tanta riqueza cultural e artística, especialmente num momento em que a sua literatura (sobretudo escrita por mulheres) está tão fervilhante, que o cinema tem qualidade para sobressair nos grandes festivais do Mundo, que a música continua a manter a fasquia que os tropicalistas elevaram para sempre, que os podcasts são cada vez mais diversos e interessantes (do humor, ao feminismo, da ecologia, à política) e que os memes são indiscutivelmente os mais hilariantes do Mundo.
Regressando ao tema da democracia, o contacto com este manancial cultural (apenas possível num país diverso e livre), além da inspiração, tem-me ensinado muitas coisas, nomeadamente a antecipar alguns debates e tensões que chegam ao nosso país um pouco depois. E se Portugal era um país de brandos costumes, muito diferente da contrastante complexidade brasileira, com a polarização em curso, há muito que podemos identificar como comum do outro lado do oceano. Felizmente, temos quem nos dê ferramentas de luta importantes, como por exemplo o feminismo negro brasileiro, que muitas lições tem dado ao Mundo sobre interseccionalidade das lutas e sobre como criar debates profundos e progressistas, quer no âmbito académico, quer democratizando a informação nas redes sociais.

