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Conquistas civilizacionais não se negoceiam. Onde estão instaladas, em leis e costumes, deveriam usufruir de blindagem. Desde logo contra mecanismos que, democráticos na génese, podem dar cobertura aos mais ignóbeis totalitarismos - referendos como o que na Suíça conduziu à proibição de minaretes, as torres das mesquitas, são disso exemplo.
Convém esclarecer de que falamos, quando falamos do caso dos minaretes. Há apenas quatro em território helvético, mas foram suficientes para justificar a convocação de um referendo. Os suíços, que maioritariamente votaram no sentido de os apagar da paisagem, têm alguma coisa contra os minaretes? Nada. Têm é contra o que eles simbolizam. Vingaram-se num papel, às escondidas, da diferença que os pouco mais de 300 mil muçulmanos do país representam. Sem perceberem (ou sem quererem perceber, o que é mais grave) que roubar a liberdade dos outros, no caso a religiosa, é perder um pouco da nossa.
Os suíços mandaram às malvas a tolerância, palavra tantas vezes usada para apelar ao respeito pelo diferente, basilar em democracia, mas que anda bem mais próximo do desprezo - tolero apesar do asco que me suscita alguém ou algo; tolero porque não posso extinguir o objecto da minha irritação.
O resultado do referendo não exprime apenas uma atitude de "sobranceria cultural"; constitui, antes de mais, um acto de "racismo", sabe-se lá com que consequências. Tanto mais estranho quanto é certo que ocorre na confederação helvética, um mosaico político cuja sobrevivência como república federal depende do compromisso, logo da cedência.
Será esse o principal problema. Na Suíça, o referendo, instrumento de democracia directa fundamental à preservação da unidade na diferença, banalizou-se. Quase tudo pode ser submetido a consulta popular, mesmo quando corresponde a valores civilizacionais, que não deveriam ser sacrificados a interesses de circunstância. Desta vez foram os minaretes, no início do ano a questão da livre circulação de trabalhadores da União Europeia no país. Manteve-se, mas não por falta de esforço de partidos de Extrema-Direita como o Partido do Povo Suíço, que antes agitaram o "papão" de romenos e búlgaros a invadirem o país e, agora, distribuíram cartazes em que os minaretes eram apresentados como mísseis.
Se um dia destes a pergunta for "é favorável à pena de morte?", não será de espantar que a maioria responda que sim, sobretudo se a questão for colocada na ressaca de uma vaga de crimes violentos. Ou que apoie, sem pestanejar, a proibição de contratos de trabalho com estrangeiros, caso o desemprego ronde a sua casa.
Andamos todos a brincar com o fogo...