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Em Março de 2020, passei alguns dias entre Góis e a serra do Açor para conhecer o rebanho de cabras sapadoras de Luís Fontinha.
Dava a ideia de que a este pertencia tudo o que a vista alcançasse: na alvorada o sol nascente que recortava as vizinhas serras da Estrela e da Lousã. Era o mesmo céu, era a mesma terra - e era uma única preocupação da alma de um pastor. Luís Fontinha mostrou-me como os caminhos das cabras, cujos passos de manhã cedo mais pareciam dedilhar o solo à procura de um segredo, não voltariam a ser, se o destino lhe obedecesse, os caminhos do fogo.
Desde 2017, a serra tinha ressuscitado. Digo-o em vez de renascido porque uma serra erguer-se do sítio dos mortos é um mistério natural. A ajudar que o mistério acontecesse havia as cabras e a vontade de Luís Fontinha. Chamavam-lhe sapadoras pela função que desempenhavam, e elas, mesmo sem se aperceberam da sua categoria profissional, trabalhavam com gosto a comer o mato, a comer o fogo. O pastor orientava-as; e explicava-me como se fazia isso de ter um rebanho e de prevenir o regresso do fogo.
No lusco-fusco já muito batido pelos nevoeiros e pela ameaça de neve, sobretudo na Lousã onde também fomos, as manadas de veados fugiam à aproximação dos carros com um certo despeito, como tivessem de se separar de uma recém-descoberta. As raposas seguiam atrás, farejando o que os rebanhos revolviam.
Já nessa altura o pastor se angustiava por falta de apoios, burocracia DDD (diabólica, demorada e deficitária) e indiferença geral. Pouca gente apadrinhava as cabras. Como aliás poucos outros pastores aderiram ao programa. Este país entusiasma-se com ideias mas não se entusiasma com levá-las a cabo.
No início de Agosto, deu-se um fenómeno português: notícias de que, na Catalunha, rebanhos de cabras têm oferecido protecção contra os incêndios. Parecia uma novidade extraordinária, um achado espanhol, um exemplo a seguir. Devemos mesmo gostar de ideias: até nos esquecemos de que as tivemos para voltar a tê-las.
Desde 2020, perdi o rastro a Luís Fontinha, excepto pelas redes sociais. Vejo que continua guardião da serra, uma espécie de chama que não queima, de vontade que não cede, apesar de ter sido obrigado a desistir do rebanho: andou vários dias a apagar as chamas que ali voltaram. Dentro em breve, a natureza começa de novo o milagre da ressurreição. Desta vez, sem a ajuda das cabras sapadoras.
O autor escreve segundo a antiga ortografia