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Juntei-me nas redes sociais a um grupo de apoio aos pombos urbanos. Alguém publicou a fotografia de um pombo, comentando: “É esta a imagem de uma praga?! Nós só vemos um pombinho... É o João.”
A piada estava feita. Respondi: “Desculpem, esse não é o João. Chama-se Justino e está indiciado por tráfico de droga.” Que eu saiba, o Justino chamado João nunca esteve indiciado por tráfico de droga. Mas parecia-me uma praga, como todos os do mesmo gangue.
Só que Justino não tem culpa dos meus desmandos, tal como os cães e os gatos e os próprios pombos não têm culpa dos desmandos do provedor dos animais de Lisboa. Pedro Emanuel Paiva entregou à Câmara Municipal de Lisboa a primeira proposta de protecção das espécies que habitam na cidade.
O provedor pretende proibir a “utilização ou exploração de animais de companhia pelos seus detentores em situações de mendicidade.” Como a proposta não está online, houve confusão e veio o esclarecimento patético: atenção, o provedor não quer proibir que os mendigos tenham cães, quer apenas proibir que os usem para fins de mendicidade. E que tenham mais do que um cão, seja como for.
Olhar para uma pessoa cuja vida é pedir na rua e escandalizar-se, não com o drama humano, mas com o suposto drama animal é decerto um desvario do pensamento. Uma doença da sensibilidade: para ajudar bichos que não precisam de ajuda, proíbe-se a única companhia que algumas pessoas têm. Se tanto, bastaria alertar para o problema dos maus-tratos a animais, seja por mendigos ou pela gente que confina os cães nos poucos metros quadrados das varandas.
O problema está numa moral que dita que a condição de bicho seja equivalente à condição de pessoa. Apenas de acordo com esse moralismo pode preocupar que um cão viva na rua e que tenha por dono um mendigo. Preocupar que apanhe chuva e frio e sol e tudo o mais, quando na verdade essa vida está muito mais próxima da vida de cão do que a vida que os cães levam nos apartamentos.
Soluções humanas para supostos problemas de animais têm levado a bizarrias: abrigos urbanos para gatos onde os gatos se recusam viver, parques para cães onde os cães não gostam de brincar, e outros que tais.
Desde que não seja maltratado, viver na rua em nada fere o cão. Nem o afecta que o dono o use para pedir dinheiro. A condição de animal de rua não é igual à condição de pessoa de rua, por muito que o provedor chore por uns e ignore os outros.
Quanto ao Justino que se chamava João, o provedor quer considerar os pombos uma espécie protegida. Isto é quase tão cómico como dizer que o Justino está indiciado por tráfico de droga, mas Pedro Emanuel Paiva decerto não perceberá a graça disto tudo.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia